Quinto Domingo da Quaresma - Homilia de D. Manuel Felício

Deus é Juiz de Misericórdia

 

 

1. Neste V Domingo da Quaresma, também chamado primeiro Domingo da Paixão, somos convidados a concentrar a nossa atenção em Deus que é Juiz de Misericórdia. E essa é a grande mensagem que temos para levar também ao nosso mundo, que precisa de viver cada vez mais o perdão, a reconciliação e a misericórdia, caso contrário não há solução para os grandes problemas que se colocam na vida das sociedades e da própria humanidade.

 

Há 8 dias contemplávamos o quadro do Filho Pródigo, a parábola considerada por excelência a parábola da misericórdia.

Hoje é-nos proposto o quadro do julgamento da mulher apanhada em flagrante adultério, também com a mensagem da misericórdia, representada na Pessoa de Jesus, que não condena, mas recomenda mudança de vida.

Neste quadro aparecem  três conjuntos de actores.

Um deles é o dos escribas e fariseus, cuja grande preocupação é defender a lei e velar pela sua aplicação rigorosa.

Do outro lado está a mulher adúltera apresentada a julgamento. Estava indefesa e à espera da sentença, que, segundo a lei, já sabia ser a condenação à morte por lapidação.

No meio está Jesus, a quem foi pedido que julgasse esta causa. E, como expressamente refere o Evangelho de hoje,  quiseram constituir Jesus como juiz desta causa para o experimentarem e para lhe armarem uma cilada e assim terem pretexto para o acusar. E, de facto, a cilada estava em que ou desrespeitava a lei e colocava-se contra Moisés ou a aplicava rigorosamente e colocava-se contra si próprio e a sua doutrina marcada essencialmente pelo perdão e pela reconciliação.

 

Perante a situação que lhe foi criada, Jesus passa para o lado dos acusadores a responsabilidade da decisão.

Sendo assim, primeiro ganha tempo – diz o texto bíblico que Jesus se inclinou e começou a escrever no chão. São muitas as tentativas de explicar o sentido deste escrever no chão, pois é a única vez em que os Evangelhos nos apresentam Jesus a escrever, e não em papiros ou pergaminhos, mas sim na terra movediça. Todavia,  a explicação mais óbvia parece ser que Jesus quis tão só desviar o seu olhar dos que estavam presentes, deixando-lhes espaço de liberdade para a decisão. E tanto assim que, passados alguns momentos, levanta o olhar para lançar o repto – “quem estiver sem pecado atire a primeira pedra” – voltando, de novo, a baixá-lo e continuando a escrever.

 

O facto é que ninguém teve coragem de arremessar a  primeira pedra, certamente porque os que ali se apresentaram também estavam com a consciência pesada. Foram saindo, um após outro, até que ficou só Jesus diante da mulher acusada. E disse-lhe – “ninguém te condenou? Também eu não te condeno. Vai e não voltes a pecar”.

Não pode deixar de nos impressionar a conclusão deste episódio, que temos de considerar um verdadeiro hino à misericórdia de Deus.

 

2. Sobre a grandeza do amor e da misericórdia de Deus, o Papa Francisco, na exortação apostólica sobre os jovens que acaba de publicar há menos de 15 dias, diz 4 coisas muito simples, mas fundamentais não só para os jovens mas para todos nós.

A primeira delas é que Deus nos ama e nos ama primeiro. Na memória e no coração de Deus todos temos um lugar, mas a sua memória não é nenhum disco rígido, expressão que o papa utiliza, pois distingue o que deve guardar daquilo que, por força da sua bondade e misericórdia, decide esquecer, como são os nossos pecados, uma vez percorridos os caminhos do arrependimento e da conversão.

Jesus limpou da memória os erros daquela mulher que estava a ser condenada e por isso diz – “também não te condeno”; mas não deixou de lhe recomendar – “vai e não trones a pecar”.

De facto, o perdão de Deus nunca é para deixar as pessoas na mesma, agarradas a situações erradas, mesmo sendo cómodas, mas sim para lhes abrir futuro novo de conversão e reconciliação.

 

O perdão e a misericórdia de Deus são o grande presente que temos para oferecer ao nosso mundo e às nossas sociedades.

Voltando à exortação apostólica do Papa Francisco, com a linguagem que lhe é peculiar, ele diz-nos qual é o essencial da mensagem cristã que temos a responsabilidade de viver e transmitir com entusiasmo.

E nesse essencial, vem, em primeiro lugar, o amor de Deus, que nos amou primeiro, como já referimos; depois, vem a salvação de Jesus que deu a sua vida por nós e por isso a nossa vida não tem preço; acrescenta a certeza de que ele vive connosco sempre e que o Espírito Santo nos comunica a  vida.

 

Estas são as certezas fundamentais que, por imperativo da nossa identidade cristã, queremos viver e testemunhar e constituem, de facto, o essencial da missão que nos está confiada.

 

3. Irmãos e  irmãs, temos consciência das nossas fraquezas e limitações, quando se trata de viver e experimentar estes bens essenciais e também quando nos confrontamos com a urgência de os propor, em missão, ao nosso mundo, nos seus diferentes ambientes e situações.

Temos igualmente consciência, enquanto discípulos de Cristo, do mandato que dele recebemos de ir por todo o lado e levar esta mensagem para a oferecer a todos, como verdadeiros missionários.

De facto, somos enviados por Cristo para viver a mensagem em campo aberto, procurando sempre os melhores caminhos para que o Evangelho de Jesus, longe de ficar aprisionado em certos ambientes, grupos e tradições, possa chegar a novos mundos e culturas, porque, de facto, ele se destina a todos.

Para que isso aconteça e assim seja cumprida a nossa responsabilidade de discípulos  missionários, pede-se a todos os fiéis como também às suas comunidades um novo despertar para a obra da evangelização, que obriga a sair ao encontro de pessoas e ambientes que ou nunca ouviram falar do nome de Jesus ou já o esqueceram e, por isso, agora precisam de quem lhes vá avivar de novo essa memória.

Precisamos todos nós de sermos cristãos mais motivados para a evangelização e para a missão, como precisamos de comunidades sempre e cada vez mais abertas aos novos desafios da mesma missão.

 

E sobre esta abertura ou não das nossas comunidades umas às outras e conjuntamente à responsabilidade da missão, o Papa Bento XVI, quando nos visitou, em 2010, dirigiu-nos palavras que precisamos de recordar de forma recorrente. Disse ele: “Nada nos dispensa de ir ao encontro dos outros. Por isso temos de vencer a tentação de nos limitarmos ao que ainda temos ou julgamos ter de nosso e seguro, pois isso seria morrer a prazo, enquanto presença da Igreja no mundo, que aliás, só pode ser missionária”.

 

4. Ora, a Quaresma tem de ser para todos nós e nossas comunidades ocasião para nos convertermos às mudanças pessoais e comunitárias que as actuais circunstâncias nos exigem.

E a motivar-nos para as necessárias atitudes de mudança temos hoje a palavra do profeta Isaías. Sendo assim, em vez de ficarmos agarrados a coisas antigas, ao passado, mesmo sendo válido, como válido foi o Êxodo com a passagem do mar Vermelho, olhemos em frente para as coisas novas que já começam a aparecer. As coisas novas eram, no caso visado pelo profeta, o fim do Exílio, qual novo Êxodo, através do deserto. Deserto que, com o aparecimento de rios de águas se transformará em jardim e terra fértil, para gáudio das pessoas mas também dos animais, incluindo os animais selvagens.

 

E S. Paulo depois de fazer a sua confissão de fé, centrada na entusiástica ligação à Pessoa de Jesus, que é o tudo da sua vida, diz-nos que só pensa em se lançar para a frente, continuando a correr para a meta final.

E a sua ligação a Jesus é mesmo radical, pois, em relação a ela, tudo o mais só pode ser considerado prejuízo e todas as coisas não passam de lixo.

 

Hoje, V Domingo da Quaresma e I Domingo da Paixão, em muitos lugares e também nesta cidade da Guarda, cumpre-se a tradição de realizar a Procissão dos Passos. É convite que se faz a todos e cada um de nós para iniciarmos um tempo especial em que meditamos a Paixão de Cristo e celebramos o Mistério da Sua Morte e Ressurreição, no Tríduo Pascal que se aproxima, culminando no Domimgo de Páscoa

 

Que na reta final desta Quaresma todos nós aproveitemos  para fortalecer a vontade de conversão e mudança e de quebrar todas as amarras que nos impedem de correr ao encontro de Cristo  e nele cada vez mais ao encontro dos nossos irmãos.

Seja esta a nossa verdadeira conversão.

 

7.4.2019

 

+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda