III Domingo da Quaresma
Homilia de D. Manuel Felício
“A sede de água viva”
1. O III Domingo da Quaresma, particularmente este ano, é marcado pela passagem bíblica do encontro de Jesus com a Samaritana junto ao poço de Jacob.
A água sempre foi realidade e símbolo de importância decisiva para as pessoas. A comprová-lo está o episódio que hoje nos é narrado pelo livro do Êxodo. A falta de água, sobretudo no deserto, é aflitiva e pode gerar motins como aquele em que o Povo se levantou em clamor contra o chefe Moisés.
A fome e a sede são sempre más conselheiras e muitas vezes geram situações de profundo descontentamento que podem levar ao que se passou na relação de Moisés com o Povo revoltado por causa das agruras do deserto que atravessava.
2. O Evangelho que escutamos, neste III Domingo da Quaresma, apresenta-nos o episódio do encontro de Jesus com a Samaritana, onde a água também ocupa lugar de destaque.
Antes de iniciar este relato, o Evangelista escreve que Jesus tinha de passar pela Samaria na sua viagem da Judeia para a Galileia. E este dever era não apenas imposto pela geografia física, pois a Samaria era entreposto obrigatório entre a Judeia e a Galileia, mas era também uma obrigação de outra ordem, porque aponta para o desejo que Jesus tinha de incluir também os samaritanos no seu roteiro de salvação.
Deixando-nos agora conduzir pelo relato bíblico, é-nos dito que Jesus, cansado da caminhada, sentou-se junto ao Poço de Jacob, era meio dia. Veio uma mulher abastecer-se de água, o que não se afigura muito provável acontecer àquela hora, de maior calor e Jesus toma a iniciativa de estabelecer diálogo com ela, dizendo “dá-me de beber”.
A samaritana fica surpreendida, por duas razões. Uma delas, porque era samaritana e as relações entre judeus e samaritanos não eram, na altura, as melhores. De facto, desde os tempos do Exílio que judeus e samaritanos se consideravam inimigos, sendo os samaritanos considerados não ortodoxos, porque se tinham misturado em demasia com as populações estrangeiras e no que ao texto sagrado diz respeito, só admitiam uma parte – o Pentateuco. Por isso, também não frequentavam o lugar de culto dos judeus, Jerusalém, mas tinham o seu próprio lugar, no monte Garizim. Outra delas era por ser mulher e estrangeira. Por isso, se compreende a reação espontânea–“como que tu, sendo judeu, me pedes de beber a mim, que sou samaritana”?
Jesus avança no diálogo, falando-lhe de outra sede e de outra água, a água viva,
A curiosidade da samaritana também cresce e, sem ter compreendido o alcance das palavras de Jesus, fixa-se em coisas práticas – o balde que Jesus não tem, o poço que é muito fundo.
Mas não deixa de perguntar por essa água viva, começando a admitir que está em presença de alguém maior do que Jacob que lhe deixara este poço.
Jesus aproveita a deixa e continua a insistir na água viva que mata a sede de uma vez por todas.
A curiosidade da samaritana continua a crescer, a ponto de lhe pedir dessa água, embora ainda muito ligada aos efeitos pragmáticos e imediatos, quando justifica com a vantagem de não ter de vir aqui muitas vezes, como até agora acontecia.
E Jesus avança e para consolidar esta abertura da samaritana ao dom de Deus, fala-lhe na sua vida pessoal e encontra da parte dela uma importante atitude de transparência, ao admitir que tivera cinco maridos e o actual não lhe pertence.
Da curiosidade a samaritana começa a passar para a atitude de Fé e confessa – “vejo que és profeta”.
O progresso na atitude de Fé aprofunda-se, agora perguntando onde é o lugar do verdadeiro culto, pois judeus e samaritanos tinham lugares de culto diferentes. E essa oportunidade Jesus também a aproveita para lhe dizer o que é o verdadeiro culto, que não está ligado a nenhum lugar em concreto, pois se trata do culto em espírito e verdade.
Em outro contexto, Jesus há-de dizer também que esse culto em espírito e verdade tem um novo templo que é a Sua própria Pessoa, como o serão igualmente os seus discípulos e a comunidade de F
é que eles constituem.
A mulher samaritana dá mais um passo em frente e fala no Messias que havia de vir, oportunidade que Jesus aproveita para lhe dizer abertamente – “esse Messias sou eu”.
A partir daqui, a mulher deixa de estar interessada na bilha que trazia consigo para levar a água, pois já tinha descoberto outra água que mata outra sede e parte correndo para anunciar na cidade que havia encontrado o Messias.
Entretanto, chegam os discípulos que tinham ido à cidade comprar alimentos. Admiraram-se pelo facto de encontrarem Jesus a falar com a samaritana, mas não tiveram coragem de lhe fazer perguntas. E de imediato deram a entender que não tinam compreendido ainda o que a mulher estrangeira compreendera.
E é assim que, se à Samaritana Jesus falara de outra água, a água viva, aos seus discípulos que o convidavam para comer, Jesus fala de outro alimento, o seu verdadeiro alimento, pois lhes diz: “o meu alimento é fazer a vontade de meu Pai que está no Céu”. E explica-lhes como devem colaborar para fazer a vontade do Pai, usando a comparação do trabalho para a ceifa.
O episódio termina com os resultados do anúncio da Samaritana na cidade sobre a Pessoa de Jesus e que remetem também para os resultados do trabalho dos discípulos, na medida em que eles se deixarem conduzir pelas orientações do Mestre. Muitos samaritanos daquela cidade acreditaram em Jesus e Jesus ficou lá alguns dias- é este o final feliz de toda catequese que Jesus faz.
3. Este III Domingo da Quaresma é o primeiro daquele núcleo de três domingos que nos convidam a revisitar o essencial da nossa Fé.
O diálogo com a samaritana e o símbolo da água que lhe está ligado remetem-nos para a sede de Deus, que, na realidade, marca a vida de todos e cada um dos seres humanos, mesmo que muitas vezes esteja diluída e até abafada pelas mil preocupações da vida.
Neste diálogo descobrimos a própria Igreja de Cristo e os discípulos a progredirem no conhecimento do seu mestre e na abertura à Fé que ele nos oferece, de graça. Vemos também a força da Palavra de Deus e dos sacramentos, começar pelo Baptismo da água e a Eucaristia, esse alimento novo, que nos conduzem para a grande meta do encontro com Ele. Descobrimos também que aquele que encontra Jesus não pode guardar só para si esse achado, mas tem de correr como a samaritana a anunciá-lo à cidade. Aqui está a ser lembrada a responsabilidade evangelizadora da Igreja e dos cristãos, quer na rapidez com a samaritana parte ao encontra da gente da sua cidade quer no ensinamento complementar que Jesus faz aos seus discípulos, usando a comparação da ceifa
4. Neste domingo, o III da Quaresma celebramos o Dia Nacional da Caritas.
A Caritas lembra-nos os pobres e também o dever que temos como cristãos e como cidadãos de cuidarmos deles. E tudo deriva do princípio elementar da nossa Fé pelo qual nos compreendemos como filhos de Deus e membros da sua Família. A realidade do amor e da partilha remete-nos para um outro princípio que é decisivo não só para a nossa vida de Fé, mas também para a própria vida em sociedade e segundo o qual nós somos administradores e não donos do pouco ou muito que nos está confiado. O destino universal dos bens por um lado e a responsabilidade de os administrar bem por outro, obrigam-nos a fazer o melhor aproveitamento de todos os recursos para que a ninguém falte o indispensável. Desta forma somos responsáveis uns pelos outros, com o dever mútuo de nos conhecermos, estimarmos e estarmos atentos às necessidades de cada um.
E aqui está o que a Caritas nos propõe, ao focar a nossa atenção na dinâmica do amor, em primeiro lugar e depois ao convidar-nos a tomar parte nas iniciativas que lhe dão cumprimento. A recomendação da esmola e da partilha tem especial lugar neste Dia Nacional da Caritas para apoiarmos as suas muitas iniciativas em favor dos que mais precisam. Por isso, tradicionalmente os peditórios deste III Domingo da Quaresma revertem a favor da Caritas.
5. Estamos a viver estas semanas centrais da Quaresma sem possibilidade de participarmos nas habituais expressões da vida comunitária, como são as celebrações, eucarística e outras, as formações, tais como os retiros e outras, ou mesmo as devoções populares que, por graça de Deus, preenchem a nossa vida cívica, muito centradas no drama da Paixão de Cristo e seu significado de salvação, ao longo de toda a Quaresma e particularmente na Semana Santa.
Que estas circunstâncias especiais não nos impeçam de, pessoalmente e nas nossas famílias, progredirmos na Fé e celebrarmos o Mistério Pascal de Cristo principalmente pelo encontro com a Palavra de Deus e pela oração pessoal e em família mais intensa.
E em hora de grande dificuldade para o mundo em geral e para a Europa em particular, façamos chegar ao Senhor esta nossa Oração:
Deus nosso Pai
Livra-nos da doença e do medo,
Cura os nossos doentes,
Conforta os seus familiares,
Dá sabedoria aos nossos governantes,
Energia e recompensa aos médicos
Enfermeiros e voluntários,
Vida eterna aos defuntos.
Não nos abandones
Neste momento de provação
Mas livra-nos de todo o mal.
Amén
14.3.2020
+Manuel R. Felício, Bispo da Guada