Em tempo de crise, parar para repensar a vida

Em tempo de crise, parar para repensar a vida

 

As circunstâncias da crise pandémica que nos afeta obrigam-nos a parar. Reforçam, assim, a pedagogia da Quaresma que nos con­vida a parar para repensar a nossa vida pessoal e comunitária.

A esse propósito, lemos, na passagem bíblica do Deuteronó­mio, a seguinte interpelação: “Qual é a grande nação que tem a divindade tão perto de si como está perto de nós o Senhor nosso Deus, quando o invocamos”?

Pensar nesta certeza, que temos tendência para esquecer no fluir da vida diária, é oportunidade que também nos ofere­cem os tem­pos de paragem quase obrigatória que estamos a viver.  Este é tempo especialmente oportuno para nos ver­mos ao espelho, ou seja tempos de procurarmos olhar para as dimensões da nossa vida pes­soal e também de relações que a agitação da vida diária não nos facilita. E se esse olhar sobre a nossa vida e as nossas relações puder ser ajudado por aqueles que nos estão mais próximos, tanto melhor.

Nestes tempos chamados de pós-modernidade que condicionam a nossa vida em sociedade, e de que maneira, somos induzidos a esquecer que a vida pessoal e das comunidades, com suas instituições, é uma história com passado, presente e futuro, para fi­carmos exclusivamente confinados à fugacidade do momento pre­sente.

Vivemos, como explicam entendidos analistas, em tempos de aceleração social, provocada pela aceleração tecnológica, a aceleração das mudanças sociais e a aceleração do fluir da vida pessoal.

A aceleração da moderna tecnologia, entre os seus muitos efei­tos, traz-nos constantemente carradas de informação que não temos tempo nem capacidade para digerir e sobre elas construir  as nossas decisões. Por sua vez, a aceleração vertiginosa das mudanças sociais não nos dá tempo para as compreendermos, fazermos as necessária adaptações  e as gerirmos devidamente a nosso favor e para bem da própria sociedade. Finalmente, o acelerado fluir da nossa vida pes­so­al quase nos tira a capacidade de sermos nós próprios os seus verda­deiros condutores.

De facto, o estilo de vida diária que a sociedade nos impõe obri­ga-nos  a tomar decisões rápidas, em tempo real,  sem o neces­sário apoio na nossa história pessoal e comunitária e sem a definição devi­da­mente  perspectivada de um futuro bom  para os indivíduos e para a sociedade.

As decisões rápidas que somos constrangidos a tomar ficam muitas vezes sujeitas a ondas de contingência imprevisíveis e prisioneiras de necessidades e desejos do momento presente, necessariamente fuga­zes. Daqui deriva, por exemplo, a generalizada incapacidade das pes­soas para assumirem compromissos definitivos ou mesmo a pra­zo mais longo.

Uma outra consequência deste nosso envolvimento na cha­ma­da pós-modernidade, associado ao fenómeno da globalização, conduz a perdas de identidade, tanto nas pessoas como nas comunidades e suas instituições, como também a nível mais geral de povos e nações com suas maneiras próprias de organizar a vida. E as decisões políti­cas, quando não têm consistência própria, mas são tomadas a rebo­que  de modas, interesses ou “lobies” mais ou menos encobertos, de facto, descartam o bem real de todas e cada uma das pessoas.

Será positivo, se a crise criar condições de paragem para que estas e outras condicionantes da nossa vida pessoal e comunitária passem a ser mais objeto das nossas preocupações e intervenções.

Parar para repensar a vida diante da nossa consciência e diante de Deus, aquele que é sempre o próximo mais próximo de cada um de nós, é o caminho certo.

E nós sacerdotes, a quem o próprio Deus confia o cuidado de estarmos com as pessoas e com as comunidades, mesmo respeitando  a contenção recomendada de encontros e assembleias, como refere a nota episcopal publicada, estamos disponíveis e sempre contactáveis para atuarmos em situações de emergência, para darmos orientações ou para interagirmos com as pessoas, através dos meios considerados os mais adaptados, incluindo as redes sociais.

Com os Bispos da Europa, fazemos esta oração a Deus Pai:

Livra-nos da doença e do medo,

cura os nossos doentes,

conforta os seus familiares,

dá sabedoria a aos nossos governantes,

energia e recompensa aos médicos,

enfermeiros e voluntários,

vida eterna aos defuntos.

Não nos abandones neste tempo de provação,

mas livra-nos de todo o mal.

Amén

18.3.220

+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda