Em tempos difíceis (5) - Reconhecer e aceitar o princípio da realidade
Começo por deixar falar a passagem bíblica do Fariseu e do Publicano.
O Fariseu foi ao Templo e instalou-se na sua suposta importância espelhada neste discursos arrogante: “Não sou como os outros, ladrões, injustos, adúlteros, nem como este publicano. Jejuo duas vezes por semana, pago o dízimo de tudo o que possuo”.
O publicano, também no Templo, reconhecendo a sua humildade e o seu pecado, batia no peito e repetia, “Meu Deus, tem piedade de mim que sou um homem pecador”. Conclusão da história: o publicano regressou justificado; o fariseu, não. E a razão foi esta: “Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado”.
Nestas duas figuras, fica a ganhar o princípio da realidade representado pelo publicano, em confronto com a ideia desmesurada e descabida sobre si próprio que o fariseu representa.
Aplica-se a este quadro simbólico o princípio enunciado pelo Papa Francisco de que “A realidade é superior à ideia” (Ev. Gaudium , nº 231). De facto, existe uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade. Por isso, entre as duas deve estabelecer-se um diálogo construtivo, evitando que a ideia se separe da realidade. Quando tal acontece, o perigo é as pessoas fazerem de si próprias e do mundo configurações desajustadas da experiência que o comum das pessoas vive, correndo o risco de descambar para fundamentalismos sem o sentido da história, para moralismos desajustados da vida real dos indivíduos e da própria sociedade ou então teorias sem interesse para o comum dos mortais.
E quando as lideranças, sejam políticas, sejam religiosas ou outras, se desligam deste princípio da realidade e entram por caminhos de construções ideológicas então não podem queixar-se de que o povo não lhes liga e se desinteressa, porque, de facto, passaram a viver mundos à parte que só a eles interessam e não àqueles que devem servir. E pior ainda quando, em nome desses mundos irreais, se fazem promessas e arquitetam projetos utópicos que a realidade não suporta. É o caso da promessa de um estado social ideal a que, de facto, a realidade da economia não pode dar resposta; e não há coragem para o reconhecer, procurando outros caminhos de sustentabilidade.
A crise que estamos a viver convida-nos a pôr os pés na terra, respeitando o princípio da realidade que é a nossa, envolvida em limites e dependências que não podemos negar, mesmo que persistam os pregadores da miragem de uma autonomia sem limites, baseada nas tais liberdades, direitos e garantias que a realidade, de facto, não suporta. Há que ter a coragem de admitir e dizer com clareza que os recursos são limitados, a começar pela bem mais precioso da nossa saúde e também dos meios de a proteger. Isto não exclui, mesmo perante a atual realidade da pandemia e do estado de emergência, a atitude de esperança e a obrigação de a transmitir a outros, não tanto por palavras, mas sobretudo com gestos de solidariedade, que podem envolver da nossa parte correr riscos para garantir assistência a quem precisa. De facto, o futuro não nos perdoaria que não cuidássemos uns dos outros, nestes momentos de crise global.
Prestamos homenagem a quem, por dever de ofício, aceita correr riscos para ajudar quem precisa, a começar pelos profissionais de saúde, neste momento muito difícil.
Nós padres, no exercício da missão que nos está confiada, conscientes das limitações que a pandemia a todos impõe, queremos renovar o nosso propósito de estar permanentemente atentos e disponíveis para darmos à pessoas a assistência que lhes é devida. Sabendo nós da importância que tem o conforto humano e espiritual para que a crise seja vivida com esperança por todos, a começar pelos afetados, mantemo-nos em oração por eles e comunicamos que a Igreja, através do Dicastério Romano da Penitenciaria Apostólica, concede indulgência plenária aos fiéis afetados com o coronavírus, submetidos a regime de quarentena, por disposição da autoridade sanitária, no hospital ou nas próprias casas. As condições são que, com ânimo desprendido de qualquer pecado, se unam espiritualmente, através dos meios de comunicação, à celebração da Santa Missa, à recitação do Santo Rosário, à prática da piedade da Via-Sacra ou outra forma de devoção ou, pelo menos, recitem o Credo, o Pai Nosso e uma piedosa invocação à Bem-aventurada Virgem Maria, oferecendo esta provação em espírito de Fé em Deus e de caridade para com os irmãos, com vontade de cumprir as habituais condições (confissão sacramental, comunhão eucarística e oração pelo Santo Padre), quando lhes for possível.
A necessidade desta ajuda vinda do alto, nos momentos difíceis que estamos a viver, também deriva de levarmos a sério o princípio da realidade que é a nossa, de criaturas limitadas e dependentes, princípio ao qual queremos estar sempre ajustados e também neste momento de crise.
Guarda, 21.3.2020
+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda