IV Domingo da Quaresma - Homilia
1.Estamos no coração da Quaresma, neste seu IV Domingo, também chamado domingo da alegria ou domingo “laetare”. De facto, os três domingos centrais da Quaresma são aqueles que nos conduzem ao coração da nossa Fé de discípulos de Cristo.
Se, há 8 dias atrás, éramos ajudados pelo simbolismo da água, hoje somo-lo pelo símbolo da luz. Na realidade, o essência da Fé consiste numa luz nova, luz que vem do alto e que nos ajuda a compreender o mundo, a história e a nossa vida com nova profundidade e novo horizonte para vermos como são as coisas e sua finalidade, como são as pessoas e as suas relações e podermos caminhar não às cegas, mas bem iluminados, rumo a metas de felicidade para nós e para os outros
Olhemos agora para o Evangelho de hoje que é uma verdadeira catequese sobre a Fé.
Apresenta-nos um itinerário em direção à profissão de Fé daquele cego de nascença miraculado, graças à intervenção de Jesus.
Este itinerário parte da vida real das pessoas, neste caso também com a convicção generalizada, embora falsa, de que a cegueira era devida ao pecado de alguém, ou do cego ou dos pais. Jesus começa por desfazer esse falso preconceito dizendo que a cegueira não tem nada a ver com isso, mas é oportunidade para se manifestarem as obras de Deus.
Por sua vez, a iniciativa de Jesus é absolutamente gratuita, pois nem sequer o cego a pede, como seria espectável e acontece noutros casos. Jesus toma a iniciativa, usa meios normais, mas não dispensa a colaboração do miraculado, ao dizer-lhe “vai lavar-te à piscina de Siloé”- Ele foi e ficou a ver. Nem se diz quem o acompanhou. A partir daí Jesus sai de cena e só volta a aparecer no final, para a profissão de Fé do miraculado. Pelo meio ficam as relações do contacto do cego de nascença com as pessoas simples , que o conheciam e depois com as autoridades representadas nos fariseus, que, à partida, estavam bloqueados e impedidos de aceitar a novidade vinda de Jesus. Argumentam que ele é um homem pecador, porque não respeita o sábado. O miraculado não fica convencido e contra-argumenta, dizendo que nunca se ouviu dizer que alguém, fora de Deus, realizasse coisas extraordinárias como esta. E acrescenta- É estranho que vós não saibais explicar isto mesmo.
O orgulho dos fariseus ficou naturalmente ferido e, como tinham o poder nas suas mãos, expulsaram-no da sinagoga.
Seguiu-se o encontro com Jesus, que volta a aparecer e o selo final da profissão de Fé, com as palavras – Eu creio, Senhor.
O comentário final de Jesus veio ainda baralhar mais as contas daqueles que se consideravam seguros no seu saber, os fariseus, pois os que dizem ver são cegos enquanto há cegos que passam a ver.
Certamente que eles se sentiram atingidos com estas palavras, mas tudo por não quererem perceber a novidade de Deus que se revelava na pessoa do mesmo Jesus.
2. Hoje procuramos viver a Fé num mundo muito cheio de contradições, como era cheio d contradições o mundo onde vivia o cego miraculado, os discípulos e o próprio Cristo.
A luz da Fé é um olhar novo sobre este mundo e a história; olhar esse que nos ajuda a ver para além das contradições e a identificar os caminhos que Deus projetou para cada um de nós e para a história enquanto tal.
Esse olhar novo não está a ser imediatamente compreendido pelos nossos contemporâneos, como aquele miraculado não foi compreendido pela gente simples que já o conhecia e muito menos pelos fariseus que, por estatuto próprio, tinham de defender a situação e os seus interesses.
Hoje, continua a persistir um certo farisaísmo em tantas formas de olhar o mundo e a sociedade, como é o caso da atitude orgulhosa de quem tem nas suas mãos o poder, ignorando que todos partilhamos a mesma sorte na viagem comum através da história. E que somos todos débeis e muito limitados. E se outra prova não tivéssemos, bastava olhar para a pandemia que já tem o mundo todo em sobressalto.
A propósito de pandemia, começamos a sentir que o mundo nunca mais voltará a ser igual ao que era antes. Esta é, por isso, hora de repensar a nossa vida pessoal e as nossas relações sociais, que terão de passar a ser menos determinadas pelo interesse e mais pela gratuidade; é a hora de fazermos esforço coletivo para descobrir novos caminhos de solidariedade capaz de integrar a todos, a começar pelos mais débeis, na casa comum que nos pertence cuidar. E no que à economia diz respeito, levarmos mais a sério a constatação, já feita há muito tempo, mas ainda não suficientemente levada a sério, de que os recursos não são poço sem fundo, são escassos e que precisam de ser bem geridos para sustentar as gerações atuais e as futuras. E aqui impõe-se procurar definir e assumir conjuntamente critérios também novos de justiça e equidade, para acabarmos com o salve-se quem puder ou o benefício exclusivo para quem for mais esperto, que equivaleria à lei do mais forte.
No meio de todas as contradições e incertezas que estamos a viver, uma coisa é certa – Deus revelado na Pessoa de Jesus Cristo garante-nos a proteção que só ele pode dar, e sobretudo abre-nos as portas da sua vida divina e o conforto dos outros irmãos na Fé, vivendo todos nós a vida em Igreja.
E este conforto não é para cada um guardar só para si, mas para levar a tantos que o não têm, porque a viverem situações de sofrimento.
A luz da nossa Fé ajuda-nos a olhar ao largo, ao bem de todas as pessoas, privilegiando as mais vulneráveis e dando atenção aos que mais precisam. Pela Fé somos especialmente desafiados a viver a autêntica solidariedade, fortalecida pelo amor de Cristo, mesmo com prejuízo imediato dos nossos interesses pessoais.
Para vivermos a Fé, com todas as suas consequências pessoais e de relação social, temos de atender à mensagem de S. Paulo na carta que hoje escutámos. Diz-nos ele: vivei como filhos da luz, dando frutos de justiça, de bondade e de verdade. Assim, contrariamos as obras das trevas.
A luz da Fé, para além de alargar horizontes na compreensão da vida e do mundo em que vivemos, ajuda-nos a conhecer o interior das pessoas, a começar por nós mesmos. Vejamos que profeta Samuel, num primeiro momento, por não dar atenção a esta luz da Fé, deixou-se tentar pelas aparências. Mas depois, conduzido pelos impulsos da luz que vem de Deus, identificou o verdadeiro escolhido do Senhor na pessoa do pequeno David, que aos olhos do pai e dos irmãos era o menos indicado.
3. A Quaresma é sempre o tempo especialmente indicado para revisitar o cerne da nossa Fé.
Tal como o cego de nascença depois de um longo itinerário chegou á profissão de Fé diante de Jesus, também nós queremos preparar a nossa profissão de Fé na Vigília Pascal, renovando as promessas do Baptismo. Para que essa profissão de Fé seja autêntica, precisamos de a preparar, interrogando-nos sobre se já dissemos o nosso não decisivo à tentação e ao pecado e sujeitando-nos à misericórdia infinita de Deus. Temos de nos perguntar pelos frutos que a nossa Fé está ou não a dar, frutos de bondade, de justiça e de verdade, como lembra S. Paulo e sobre se estamos ou não a assumir a nossa responsabilidade para com este mundo que, de facto, nos é dado como tarefa para o evangelizarmos.
Sã estes alguns pontos que merecem fazer parte do nosso exame de consciência mais desenvolvido, ao longo destes dias de Quaresma, para fazermos a nossa profissão de Fé com verdade, na Páscoa.
Nesta hora especialmente difícil que estamos a viver, em situação de pandemia, sabendo nós que o conforto humano e espiritual é importante para todos fortalecerem a esperança, a começar pelos infetados, desejamos manter-nos em oração por eles e lembrar a todos que a Igreja, através do Dicastério Romano da Penitenciaria Apostólica, concede indulgência plenária aos fiéis afetados pelo Coronavirus, submetidos a regime de quarentena, por disposição da autoridade sanitária, quer no hospital quer em suas casas. As condições são as seguintes: ter o coração desprendido do pecado, unir-se, pelas redes de comunicação, à celebração da Eucaristia, à recitação do terço do Rosário ou da Via-Sacra ou pelo menos recitar o Pai Nosso, o Credo ou também alguma piedosa invocação da Virgem Santa Maria e oferecendo esta provação em espírito de Fé em Deus e de caridade para com os irmãos, com o propósito de cumprir, quando possível, as habituais condições que são a confissão sacramental, a comunhão eucarística e a oração pelo Santo Padre.
Que o Senhor a todos nos acompanhe e nos conforte nesta caminhada quaresmal, em tempos de crise.
22.3.2020
+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda