Em tempos de crise (6) - Fortalecer a esperança

Em tempos de crise (6) - Fortalecer a esperança

 

O profetas Isaías é um sonhador; e grande parte dos seus sonhos nasceu em tempos muito conturbados para todo o Povo, os tempos da escravidão, no Exílio da Babilónia.

Mas é precisamente em contexto de dor e de infortúnio coletivo que o profeta levanta a sua voz para fazer acreditar os seus compatriotas na possibilidade de um futuro diferente, com o qual o próprio Deus se compromete e nos seguintes termos: “Vou criar uns novos céus e uma nova terra... Nunca mais se hão-de ouvir vozes de pranto nem gestos de angústia... Construirão casas e habitarão nelas; plantarão vinhas e comerão os seus frutos” (Is. 67, 17 s).

De forma ajustada às circunstâncias da crise que todos estamos a viver, este apelo é também para nós. É possível construirmos juntos um futuro novo, configurador de uma nova globalização, com novos critérios reguladores das relações e dos interesses a nível internacional.

Estamos, de facto, em guerra contra um inimigo comum e, para mais, invisível, pelo menos a olho nu, o qual só pode ser vencido com a colaboração de todos.

Ora, este ensaio de cooperação, a nível global, é desejável que possa ser aproveitado para tentarmos descobrir estratégias novas de concertação entre todos. E aqui, o importante é saber valorizar o contributo de cada cidadão,  de cada cultura,  de cada país, sempre com a suas potencialidades próprias para o bem comum  de um  todo que é sempre maior que as suas partes, mas precisa de saber integrá-las e aproveitá-las todas, com as suas potencialidades próprias.

Diz o Papa Francisco, na exortação apostólica Evangelii Gaudium, nº 234, a este propósito, que “entre globalização e localização também se pode gerar alguma tensão. E, por isso, há que evitar dois extremos, a saber, que, por um lado, os cidadãos sejam tentados a  viver uma universalidade abstrata e globalizante, ou, por outro, que se fechem no seu particularismo asfixiante, incapazes de se deixarem interpelar pelo que é diverso”.

De facto, o todo é sempre mais que as partes, e até mais do que o resultante da soma das partes; e isto de tal maneira é verdade, que o bem comum  global só se atingirá quando houver capacidade de libertar para a fruição de todos as riquezas de todas e cada uma das partes, nomeadamente da diversidade de povos e culturas, incluindo a força da sua história e sabedoria próprias.

Numa hora em que as circunstâncias nos obrigam a repensar o futuro à escala global e não só das nossas comunidades mais próximas, precisamos de líderes, políticos e outros, que sejam capazes de colaborar entre si para conseguir o máximo aproveitamento das muitas riquezas espalhadas pelos diferentes povos e culturas, a fim de que se constitua esse poliedro de contributos variados para juntos progredirmos na concretização do sonho de renovação da sociedade, como aquele do profeta Isaías que referimos.

Para isso, é importante desenvolver a arte de motivar a  colaboração de todos e não deixar nenhuma parte de fora.

Nessa colaboração, hão-de ser chamados a participar os pobres, com a sua cultura, os seus projetos, e as suas próprias potencialidades; os que, sem serem ricos, dispõem de meios materiais indispensáveis para viver com dignidade; os ricos e os muito ricos, que, assim, dão cumprimento à função social da sua riqueza; os analfabetos e os de cultura média; os académicos e os investigadores cientistas e outros. Basicamente, temos de saber desenvolver a solidariedade, a todos os níveis.

E, em abono da verdade, reconhecemos que a União Euro­peia já está a dar sinais positivos de querer entrar por caminhos novos de solidariedade, nomeadamente decidindo retirar os tetos impostos aos in­dividamentos dos  países membros para estes poderem fazer face às muitas necessidades emergentes e sobretudo apontan­do uma nova política que é a de todos os países serem solidários com a dívida dos outros países membros.

É importante alimentar, desde já, este sonho que poderá trazer nova esperança às populações necessariamente afetadas, e muito, pela crise que nos atinge e de que maneira.

Que estes tempos de alguma aflição e crise possam ser laboratório de novas estratégias e ações concertadas, a nível global, é o que legitimamente desejamos e, para que tal aconteça, dirigimos a nossa prece ao Senhor da história, por intercessão maternal de Maria Santíssima – “Santa Maria, Mãe da saúde e da esperança, roga por nós”.

 

23.32020

 

+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda