Em tempos de crise (9) - Recusar todas formas de autismo
Lemos na passagem bíblica do livro do Êxodo 32, 7-14, que o Povo, em determinado momento, desligou-se da sua história, abandonou o seu chefe e criou para si uma situação irreal e de fantasia, fazendo uma grande festa, diante de um bezerro de metal fundido.
Esta mesma ilusão de ficar sozinho, entregue aos seus próprios interesses e apetites, sem consideração pelos outros e pelo bem que igualmente lhes pertence, continua a infiltrar-se hoje na vida das pessoas, dos grupos e dos povos, quando lhes passa pela cabeça que não precisam de mais nada nem ninguém, são a única medida última de si mesmos e dos outros, com a ideia de que podem viver sem prestar contas seja a quem for.
Ora, sobre o imperativo de caminharmos juntos, na plataforma da vida solidária e em partilha, diz o Papa Francisco: “Neste tempo em que as redes e demais instrumentos de comunicação humana alcançam progressos inauditos, sentimos o desafio de descobrir e transmitir a mística de viver juntos... Como seria bom, salutar, libertador, esperançoso, se pudéssemos trilhar este caminho! Sair de si mesmo para se unir aos outros faz bem. Fechar-se em si mesmo é provar o veneno amargo da imanência e a Humanidade perderá com cada opção egoísta que fizermos” (Exortação Apostólica Ev. Gaudium, nº 87).
Embora estando impedidos de sair de casa, pelo estado de emergência que temos de cumprir e, em grau mais rigoroso, a partir das zero horas de hoje, faz-nos bem revisitar estas razões de fundo, que dão sentido ao nosso viver pessoal e comunitário. A vida ganha em qualidade com a abertura das pessoas, dos grupos, dos países uns aos outros. Perde sempre com todas as formas de autismo egoísta, quando as pessoas, os grupos e os países se fecham sobre si próprios, olhando só para os seus interesses e esquecendo que o bem só pode ser bem quando é bem para todos.
Compreendemos agora como este é o grande pecado dos nacionalismos, dos fundamentalismos, dos populismos, sobretudo com a recusa de acolher emigrantes e refugiados ou com outros comportamentos descentrados do bem de todos.
Felizmente que, nestes tempos difíceis e de grande sofrimento, já aparecem alguns sinais que podem indiciar um novo rumo para o futuro da vida comunitária, à escala global.
Assim, vemos com bons olhos que os estados europeus queiram assumir o compromisso de suportarem conjuntamente e com equidade os custos da pandemia, nas respetivas economias, e vão ser elevados certamente, a avaliar pelo que já se está a ver.
Por sua vez, o apelo ontem feito pelo Secretário Geral das Nações Unidas para que os países mais ricos criem um fundo de apoio aos países e aos cidadãos mais desprotegidos, como é o caso dos que estão em guerra ou daqueles que se encontram em campos de refugiados, constitui, por si mesmo, grande sinal de esperança.
Felizmente que estes momentos de crise também tocam os corações dos que têm mais recursos económicos e estão a aparecer pessoas e grupos a oferecer donativos consideráveis e generosos para combater o inimigo comum, uma grande causa para a qual todos precisamos de estar mobilizados, mesmo tendo de começar por, no imediato, nos conservarmos, o mais possível, em casa.
Nesta hora de muito sofrimento, quando entre nós a situação está a atingir o pico dos cuidados exigidos, com o chamado ponto de mitigação, invocamos a proteção divina sobre todos nós, a começar pelos que se encontram doentes e aqueles que os cuidam mais diretamente. E pedimo-la também para tantos outros que estão a desenvolver a sua atividade profissional, prestando cuidados aos mais vulneráveis, a começar pelas populações idosas residentes em lares; e ainda para os que, como voluntários, estão disponíveis ara colaborar, das mais variadas maneiras, nas respostas necessárias sobretudo para os casos mais urgentes e, porventura, com riscos inerentes.
E que Maria Santíssima, com sua proteção maternal, cuide todos nós, que vivemos em Terras de Santa Maria.
26.3.2020
+Manuel, R. Felício, Bispo da Guarda