Em tempos de crise (10) - Revisitar a nossa identidade e missão
Estamos já habituados à seguinte frase feita: “Todos iguais e todos diferentes”. Todos iguais, é certo, em direitos e oportunidades; todos diferentes, em capacidades e competências para enriquecermos o todo social que integramos.
Lendo a passagem bíblica do livro da Sabedoria 2,12-22, encontramos uma diferença que incomoda. É a diferença do justo que procura viver da justiça e da verdade, do princípio do respeito pro todas e cada uma das pessoas, seguindo as regras básicas da convivência e dos valores essenciais à vida de todos. Não é compreendido, mas, pelo contrário, é perseguido até ser compulsivamente calado por aqueles que se sentem atingidos e não querem mudar os seus comportamentos claramente errados.
Todos nós sabemos que a verdade e as suas consequências na vida pessoal e social são, muitas vezes, fator de incómodo e interpelam para a mudança de vida.
O aprofundamento da identidade e da missão de cada um, diante dos desafios que hoje coloca a vida em sociedade organizada em função do bem de todos, precisa de evitar a tentação que o Papa Francisco descreve assim: “Muitos tentam escapar dos outros, fechando-se na sua privacidade confortável ou no circuito reduzido dos mais íntimos e renunciam ao realismo da vida social” (Ex. Apost. Evangelii Gaudium, nº 88).
Ora, no processo de cada um definir bem e assumir a sua identidade e a sua missão para atuação concertada no mundo atual, que juntos temos a obrigação de fazer evoluir para níveis de humanização ainda não conseguidos, há duas preocupações a reforçar. Uma delas é o esforço pessoal e constante para cada um discernir bem a sua riqueza própria, com as suas capacidades de intervenção na vida em sociedade e dispor-se a colocá-las ao serviço. Outra é procurar superar a desconfiança e o medo de sermos exageradamente invadidos na nossa privacidade e recusarmos a atitude de nos pormos à defesa.
De facto, a única defesa que tem de nos congregar, cada um de nós com as suas diferenças, para o enriquecimento do todo social, é a defesa da verdade e do bem para todas e cada uma das pessoas, na sua integralidade.
Nesta sexta-feira da Quaresma, em que nos é recomendada a meditação pessoal diante do sofrimento e da morte d´Aquele que cumpriu integralmente a sua identidade e a sua missão, oferecendo a vida pelo bem dos outros, sem nada pedir como recompensa, cada um saiba também interrogar-se sobre o que está disposto a fazer para o bem de todos. E nesta hora de pandemia, na sua fase de agudização, pode ser aceitar correr riscos para salvar outras vidas ou diminuir o sofrimento de muitas pessoas e famílias.
27.3.2020
+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda