V Domingo da Quaresma - A vida é mais forte do que a morte - Homilia de D. Manuel Felício

V Domingo da Quaresma - A vida é mais forte do que a morte

 

1.Iniciamos, neste V Domingo da Quaresma a preparação mais imediata para a celebração da Páscoa.

Somos, a partir de hoje, convidados a meditar mais intensa­mente o significado da Paixão de Cristo. Por isso, em muitos lugares e também na cidade da Guarda há a louvável  tradição da Procissão dos Passos; Procissão assim chamada, porque regista os passos principais da caminhada de Cristo desde o Pretório de Pilatos até ao Calvário e à Sua morte na Cruz.

 

Este ano, as circunstâncias da pandemia obrigam-nos a ficar em casa e a vivermos, de outra maneira, estes tempos de especial significado para a nossa Fé de discípulos de Cristo e membros do Seu Corpo que é a Igreja.

Assim, nestas duas semanas que estão á nossa frente, de pre­paração mais próxima para a celebração da Páscoa, somos especialmente convidados a acompanhar Jesus Cristo no seu percurso de Via-sacra, em direção á Cruz. Procuremos ler e meditar, quanto possível em família. os relatos bíblicos da Paixão. E não podendo receber corporalmente o alimento da Eucaristia, façamos a nossa comunhão espiritual, enquanto, através dos meios de comunicação disponíveis, acompa­nha­mos, em nossas casas, alguma das várias transmissões da Eucaristia sobretudo ao domingo. A meditação dos mistérios dolorosos do terço do Rosário, assim como o exercício ad Via-Sacra, em nossas casas, são outras ajudas preciosas para nos fixarmos cada vez mais no Mistério da Paixão Redentora de Cristo

 

2.Este V Domingo, por um lado, encerra o ciclo dos 3 domin­gos centrais da Quaresma que pretendem levar-nos ao cora­ção da nossa Fé, revistando os seus pontos essenciais e    aju­dan­do-nos, assim, a preparar a Profissão de Fé, na Solene Vigília Pascal, com a renovação das promessas baptismais; por outro lado, abre o ciclo da preparação próxima para a festa da Páscoa.

 

As passagens bíblicas que lemos e meditamos neste domingo convidam-nos a centrar a nossa atenção na realidade maravilhosa da  vida que retira à morte a última palavra.

É facto indesmentível que o desejo e a alegria de viver são valores universais. Circunstâncias muito especiais, como a da pandemia que nos está a afetar,  de tal maneira oprimem as pessoas que lhes podem afetar a alegria de viver, mas a luta por afirmar o valor da vida e a sua defesa contra todos perigos e ameaças está à vista. A comprová-lo está também o facto de que os investigadores e profissionais de saúde todos os dias estão a sonhar novas formas de fazer parar essas ameaças, a começar pelo vírus que agora invisivelmente nos ataca.

Também é facto universalmente experimentado que a morte sempre foi e continua a ser um enigma que a inteligência humana tem dificuldade em gerir. Pois, se o desejo de viver é de todo o ser humano e a recusa da morte é instintiva, porque temos de passar por ela?

 

Reportando-nos agora ao relato do Evangelho de S. João que hoje escutamos, a sua novidade está em que, nas circunstân­cias normais do funeral de um amigo, Lázaro, com a dor com­preensível dos seus familiares, neste caso as duas irmãs, Jesus traz a novidade de que a morte não é a última palavra; es­sa pertence à vida, que renasce da própria morte e a ven­ce.

Acompanhemos, portanto, mais de perto o percurso de vida e de Fé da cena evangélica relatada e vejamos.

Lázaro estava doente.

Era de  uma família amiga de Jesus – a irmã até tinha sido aquela Maria que ungira o Senhor com perfumes.

Jesus estava ausente, recebeu a notícia, demorou mais algum tempo e comunicou aos discípulos que tinha de regressar à Judeia. Todos pensaram imediatamente na ameaça de morte que pendia sobre Ele, da parte das autoridades judaicas, sendo por isso temeridade ir para Jerusalém, o que seria como meter-se na boca do lobo.

Jesus explica aos seus mais diretos discípulos que a doença de Lázaro e a sua morte são oportunidade para nela se revelarem a glória de Deus e do próprio Jesus.

Também há oito dia atrás, na passagem bíblica do cego de nascença, Jesus explicava que esta cegueira não é castigo de ninguém, mas sim oportunidade para se revelarem as maravilhas de Deus.

Por sua vez, o encontro de Jesus, à entrada de Betânia. com as duas irmãs em luto, primeiro com Marta e depois com Ma­ria, começa por ser igualmente carregado da mais profunda humanidade.

Assim, as irmãs revelam a sua dor, mas nem por isso deixaram de acreditar no valor da vida.

Jesus partilha essa dor e emociona-se até às lágrimas, ao ponto de os circunstantes comentarem – “vejam como ele era seu amigo”.

No diálogo a três, aparece um ponto essencial da Fé do Antigo Testamento, que é a Ressurrição dos mortos no fim dos tempos – “Eu creio, diz Marta, que ele vai ressuscitar no último dia”.

Jesus transmite-lhes a grande novidade de que elas não estavam à espera, dizendo: “Eu sou a Ressurreição e a vida”.

A dor natural das duas irmãs é partilhada por Jesus até às lágrimas, e é nesse quadro de profunda humanidade que aparece o dado novo de que a Ressurreição não é apenas um episódio do final da História, mas acontece na relação de Fé com Jesus.

E essa novidade que a todos surpreende suscitou algumas interrogações também nos circunstantes, que eram muitos e tinham vindo dar os pêsames à família pela morte de Lázaro, mas prepara-os, de alguma maneira, para a grande surpresa que vai ser o regresso de Lázaro à vida, ele que estava morto havia 4 dias.

O milagre da Ressurreição de Lázaro manifesta o poder de Deus Pai, ao qual Jesus se dirige em oração e credencia o mesmo Jesus. Por isso, assim termina a passagem bíblia, muitos judeus acreditaram n´Ele.

 

A vida venceu a morte na Pessoa de Jesus e o cumprimento desta certeza de Fé na nossa vida pessoal e mesmo comunitária deverá ter como expressão a recusa das obras que lhe são contrárias e que S. Paulo identifica com o viver segundo a carne que é contrária à opção por viver segundo o Espírito; esse mesmo Espírito que ressuscitou Jesus e também está connosco para dar vida aos nossos corpos mortais.

 

3.A morte deixa de ser a última palavra. Essa, sim, passa a pertencer á vida. Esta é a certeza de fundo que atravessou já o Antigo Testamento, como nos revela hoje a passagem bíblica de Ezequiel.

E nós precisamos que essa mesma certeza nos acompanhe  sempre e particularmente nestes tempos difíceis de luta contra a pandemia e todas as ameaças à vida que ela traz e representa.

O quadro de profunda humanidade que o Evangelho  de hoje nos apresenta inspira-nos e motiva-nos para sabermos estar próximos uns dos outros, pois a verdade é que estamos todos no mesmo barco. Claro que agora essa proximidade não pode ser igual àquela proximidade física a que estamos habituados. Mas através dos muitos meios possíveis quere­mos estar próximos de todos os que se encontram na linha mais da frente, a prestar cuidados aos que mais sofrem, quer nos hospitais, quer nas casas onde se encontram oss mais vulneráveis, como são os lares;  Mas também nos serviços essenciais, sobretudo farmácias e lugares de abastecimento ou mesmo quem se ocupa nos serviços de limpeza. Quere­mos manifestar o nosso apreço e  a nossa solidari­eda­de por tan­tos que, muitas vezes de forma anónima, procuram ga­ran­tir que a vida não pare e a luta conta o inimigo comum e invisível se mantenha firme.

 

Com as regras da situação de emergência que, por determi­nação superior, estamos a cumprir, fica-nos muito tempo para estar em casa, junto dos que nos são mais próximos. Este é tempo que havemos de saber aproveitar para repen­sar a nossa vida, verificando em que medida nela há ou não hie­rar­quia de valores; procurando averiguar o que é mais importante, se os resultados materiais, incluindo a carreira profissional ou as relações, a começar pelas mais sagradas, como são as de família.

Mas também é tempo para cada um de nós ver como é que po­de intervir mais ativamente na vida da sociedade para jun­tos podermos definir as novas regras que se impõem pa­ra não só podermos repor os estragos que necessaria­mente nos traz a pandemia, mas para que um futuro novo seja construído por todos  e para todos.

 

Finalmente, vamo-nos habituando à ideia de que a pandemia trará para todos novos sacrifícios. E nós bem sabemos que os sacrifícios, o sofrimento e a própria morte fazem parte do nosso percurso de vida.

Que nesta preparação próxima da Páscoa, a luz da vida nova em Cristo nos ajude a assumir também como caminho de reconstrução pessoal e comunitária os sacrifícios que as cir­cuns­tâncias nos pedirem.

Vale-nos a certeza de que o Senhor Ressuscitado é a nossa com­panhia e a nossa esperança.

 

29.3.2020

 

+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda