Em tempos de crise (12) - Quem não tiver culpas atire a primeira pedra

Em tempos de crise (12) - Quem não tiver culpas atire a primeira pedra

 

Fomos surpreendidos por declarações de um membro do governo holandês que apontava o dedo a países que estão a ser vítimas especiais da pandemia, nomeadamente a Espanha. Isto quando, na Europa, se discute a ajuda solidária dos 27 países membros a cada um dos outros seus pares, de acordo com as respetivas necessidades.

Ora, que se façam comentários como este e sobretudo se questione o princípio da solidariedade nas decisões mais acertadas para fazer face à crise que a todos nos envolve sem deixar ninguém de fora revela, no mínimo,  desumanidade inqualificável e muita falta de senso.

 

Se lermos com atenção o episódio bíblico da mulher adúltera  (Jo. 8, 1-11), identificaremos certamente os critérios das posições mais adequadas que devem ser tomadas perante situações como a da crise que estamos a viver.

Então vejamos.

Jesus foi interpelado sobre o que fazer diante do mal reconhecido como tal. A lei era clara e não deixava, em si mesma, margem para dúvidas. O mesmo Jesus, porém, soube criar condições para que os próprio acusadores concluíssem pela não aplicação dessa lei, em sua rigidez, porque, para além de não respeitar a humanidade com que todos têm direito a ser tratados, criaria novas injustiças. E nenhum dos acusadores teve coragem de atirar a primeira pedra, porque, de facto, todos tinham culpas no cartório.

 

É indiscutível que estamos todos no mesmo barco, e a enfrentar um inimigo comum, que só pode ser vencido com a atuação concertada de todos.

Também é verdade, como denuncia o Papa Francisco na exortação apostólica Evangelii Gaudium, que o nosso mundo “está dilacerado pelas guerras e a violência ou ferido por um generalizado individualismo que divide os seres humanos e os põe uns contra os outros, visando o próprio bem-estar” (nº 99).

Esta é a doença infelizmente generalizada e o remédio aponta-o também o Papa, a seguir, recomendando o testemunho da comunhão fraterna de modo que todos se preocupem uns com os outros; se encoragem, animem e ajudem.

 

Efetivamente, não temos outro caminho senão estarmos uns com os outros, cada vez mais unidos e em atuação concertada contra o inimigo comum, cada um no seu posto, alguns mais na linha da frente, como os profissionais de saúde, os cuidadores dos mais vulneráveis, sobretudo os idosos, os que garantem serviços essenciais que não podem parar; outros permanecendo em casa, mas sem deixarem de estar atentos a necessidades concretas que possam surgir nos seus vizinhos e conhecidos ou outros e dispondo-se sempre a ajudar, mesmo que isso possa trazer riscos.

E temos de estar preparados para os sacrifícios adicionais que a crise nos vai impor, sobretudo dispostos a consumir menos e a partilhar mais.

Também não podemos esperar que os problemas sejam todos resolvidos a partir de cima. Por isso, ao mesmo tempo que pedimos para quem nos governa a sabedoria necessária para gerir da melhor maneira a coisa pública, de tal maneira que sacrifícios e benefícios  sejam distribuídos com equidade  e justiça;  para todos nós pedimos igualmente a arte e o empenho para procurarmos formas alternativas de preencher o vazio a que o Estado não poderá responder.

Estamos, de facto, a testar os nossos limites e a absoluta necessidade de estarmos uns com os outros, em atuação coordenada nesta crise que alguns já chamam de verdadeira guerra mundial.

E esperamos que o primeiro testemunho de solidariedade para a todos nos unir neste propósito de vencer o inimigo comum venha de cima, nomeadamente das decisões da Europa dos 27 quanto a compromissos de solidariedade para com os que, neste momento, mais estão a sofrer.

Por isso, pedimos , em oração, a luz do alto e a proteção divina para os que, neste momento, têm de tomar decisões.

 

30.3.2020

 

+Manuel R. Felício, Bispo da Guara