Em tempos de crise (13) - Acreditar que podemos vencer

Em tempos de crise (13 - Acreditar que podemos vencer

 

Os tempos de especiais dificuldades como aqueles por que estamos a passar podem ter efeito duplo na vida das pessoas e também na vida coletiva.

Assim, podem motivar cada um para desenvolver e pôr ao serviço as suas capacidades, muitas ou poucas. Mas podem atuar em sentido con­trário e levar as pessoas ao desânimo e ao descontentamento, a ponto chegarem à tentação da revolta.

Foi o que aconteceu com o Povo do Antigo Testamento, na travessia do deserto.

Lemos na passagem bíblica do Livro dos Números 24, 4-9: “O Povo im­pacientou-se e falou contra Deus e contra Moisés”, ao mesmo tem­po que era tentado a voltar para trás, recordando as “cebolas” do Egip­to, onde tinha pão com fartura e água em abundância, contraria­men­te ao que se passava naquele deserto. E, por estranho que pareça, isto acontecia, depois de muitos sacrifícios, quando já se avistava a meta da terra prometida.

 

A história repete-se e, por isso, os tempos difíceis como aque­les que estamos a viver pedem que nos ajudemos muito uns aos outros pa­ra afastar todas as formas de desâ­nimo e aplicarmos ao máximo as nossas capacidade contra o inimigo comum.

É natural que as atuais circunstâncias coloquem pessoas em novas dependências e sem capacidade para satisfazerem as suas necessi­dades básicas. Mesmo proibidos de vivermos a proximidade física, como gostaríamos, há meios pelos quais podemos inteirar-nos das situações  de cada um, para lhes darmos a resposta ajustada às cir­cunstâncias. E tudo indica que vamos precisar de fortalecer essa atenção para nos ajudarmos mutuamente a enfrentar com coragem e muita esperança os novos sacrifícios que a conjuntura nos vai pedir.

 

Sendo assim, esta é a hora de procurarmos corrigir o vício do indivi­dualismo e do distanciamento uns dos outros, que se foi entranhando nos nossos hábitos e parece que  já faz parte da cultura dominante.

Sobre isso, vale a pena atender à Palavra do Papa Francisco, na exor­tação apostólica Evangelii Gaudium, nº 169, onde diz: “Numa civiliza­ção paradoxalmente ferida pelo anonimato e simultaneamente obse­cada com os detalhes da vida alheia, descaradamente doente de morbosa curiosidade, há necessidade de um olhar solidário para con­templar, comover-se e parar diante do outro, tantas vezes quan­tas forem necessárias”.

Estamos, de facto, em tempos diferentes  que nos exigem um olhar di­ferente de todos para todos, sabendo que somos passageiros do mes­mo barco e, por isso, a sorte de uns será também, em muitos aspetos, a sorte dos outros.

 

Agora não podemos queixar-nos de não ter tempo.

E é bom que tenhamos tempo para o essencial da nossa vida pessoal e também para o que devemos propor que seja prioritário na nossa vida coletiva.

Mas, em primeiro lugar, tem de estar a atenção personalizada que de­vemos uns aos outros, contra os hábitos dominantes do individua­lis­mo e procurando desfazer as muitas formas de anonimato que atin­gem as pessoas e as fazem sofrer. Isto sem deixarmos de valorizar e procurar respeitar a privacidade a que todos temos direito, embora hoje, em muitos dos seus aspetos, devido sobretudo ao poder dos mo­dernos meios de informação, esteja cada vez mais limitada. E nem a lei da proteção de dados nos consegue defender.

 

Na nossa oração, peçamos do alto o conforto para todos nestes mo­mentos de dificuldade e provação que estamos a viver; peçamos também  a sabedoria necessária para todos enfrentarmos com co­ragem os sacrifícios que as circunstâncias nos impõem e para quem nos governa a clarividência nas decisões.

 

31.3.2020

 

+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda