Em tempos de crise (15) É preciso não ter medo da verdade
Nestes dias em que os cristãos preparam a celebração da Páscoa, vale a pena lembrar o princípio básico de que só a verdade liberta. A mentira ou esconder a verdade, sobretudo nos seus aspetos mais decisivos para a vida das pessoas, esse é caminho que dá sempre maus resultados.
Mas todos nós conhecemos a tentação generalizada de esconder a verdade que incomoda ou então a de tentar modificá-la ou adaptá-la aos interesses do momento.
Lembro, a este propósito, o diálogo muito tenso de Jesus com os seus contemporâneos, em vésperas do processo que o havia de levar á morte. Na passagem bíblica de Jo. 8, 51-59, Jesus afirma a verdade fundamental que Ele veio oferecer à Humanidade, a saber, a vitória sobre a morte e a afirmação da esperança na vida nova da Ressurreição. Para quem o escutava esta era uma verdade nova e dura demais para se poder aceitar, mesmo reconhecendo os muitos sinais de credibilidade que o apresentavam como alguém especial, com autoridade credenciada para apresentar novidades que superavam, de facto, as expectativas comuns. Todavia não resistiram à tentação de rejeitar essa verdade, procurando eliminar quem a propunha. E, por isso, começaram a pegar em pedras para o apedrejar.
Ora, nestes tempos difíceis de pandemia que estamos a viver, é preciso reforçar a coragem de colocar a verdade em primeiro lugar e acima de tudo. Isto mesmo quando ela nos traz notícias menos agradáveis, como são indicações de que as dificuldades tendem a aumentar e nos vão pedir novos sacrifícios.
Aqui vale a pena atender às recomendações feitas pelo Papa Francisco na exortação apostólica Evangelii Gaudium, nº 154, quanto a auscultar o povo com seus anseios e formas concretas de viver a verdade e de a traduzir em linguagens próprias. E quem o souber auscultar, diz ele, descobrirá “as aspirações, as riquezas e as limitações, as maneiras de orar, de amar, de encarar a vida e o mundo” ... Prestará atenção ao povo concreto, com os seus sinais e símbolos, procurando responder ao problemas identificados.
De facto, é esta verdade real e não teórica representada e vivida pelo povo a que nós pertencemos que tem de ser determinante para as decisões que urge tomar no imediato e a prazo mais largo, seja por cada um de nós, seja pelas autoridades, com seus poderes próprios.
É esta a verdade que põe diante de nós, na sua realidade nua e crua, pessoas que trabalham e sofrem, a confrontarem-se diariamente com mil problemas que sozinhas não sabem nem podem resolver e, quantas vezes, a gritarem por respostas que superam as suas capacidades.
É esta a verdade que a situação de crise também nos está a expor com realismo surpreendente, pedindo respostas em que todos temos de saber envolver-nos. De facto, os grandes problemas, como aquele da pandemia que nos bateu á porta, só com a participação de todos, cada um segundo as suas capacidades e responsabilidades, podem encontrar caminhos de solução.
Nestes dias, fazemos uma prece especial para que o percurso de Jesus em direção á morte, e morte na cruz, inspire também as nossas escolhas, sempre com o olhar colocado no bem de todos, a começar pelos que mais sofrem. Por caminhos como estes não só descobriremos a verdade que liberta, mas também experimentaremos a libertação que ela nos traz.
2-4-2020
+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda