Em tempos de crise (16) - Sentimos que o tempo é maior do que o espaço
Estamos habituados a viver no mundo da rapidez, onde as mudanças são constantes e vertiginosas e nos obrigam a dar respostas rápidas e sem tempo para as definirmos convenientemente.
Pensávamos que a introdução das novas tecnologias e das máquinas, nomeadamente com a tão propalada robotização, iria libertar as pessoas para uma maior tranquilidade e sossego nas suas vidas e com possibilidade de se desligarem das tarefas absorventes do imediato e se poderem concentrar no que é essencial, a começar pela qualidade das relações, sobretudo em família.
Não aconteceu assim, antes pelo contrário, pois é a própria máquina a obrigar as pessoas a andarem ao seu ritmo.
Mas, de repente, obrigados a permanecer em casa, ficamos com o tempo todo para nós, o que também está a ser novo problema, habituados como estávamos a passar o dia a cumprir imperativos de agenda e respondendo a solicitações, mais do que a definir bem as prioridades em que devemos empenhar-nos.
O Papa Francisco faz uma reflexão sobre a relação entre espaço e tempo que, nesta hora, a todos nos pode aproveitar. Enquanto que o espaço, por natureza, define fronteiras e limita, o tempo coloca-nos sobre uma linha de vivências, com decisões e realizações, sempre de horizonte aberto. Mais ainda, as decisões que hoje tomamos serão tanto mais realizadoras de verdadeira humanidade, em nós e nos outros, quanto mais se inspirarem nesse horizonte aberto e para ele nos fizerem convergir, primeiro como pessoas e depois também como comunidades.
A experiência vai-nos dizendo que, quando não fazemos boa gestão do tempo, corremos o risco de ser suas vítimas, em vez de o aproveitarmos como a oportunidade de verdadeiro crescimento para nós e para os outros.
Paremos, então diante da reflexão que o Papa Francisco faz, nos seguintes termos: “Existe uma tensão entre a plenitude e o limite. A plenitude gera a vontade de possuir tudo e o limite é o muro que nos aparece pela frente. O tempo, considerado em sentido amplo, faz referência à plenitude do horizonte que se abre diante de nós e o momento presente é expressão do limite que se vive num espaço circunscrito. Os cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento (espaço) e a luz do tempo, do horizonte, do horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai. Daqui surge um primeiro princípio para que um povo possa progredir na sua construção: o tempo é maior do que o espaço”.
Nestes tempos de preparação imediata para a Páscoa, quando, de repente, o tempo nos é oferecido de bandeja, vamos procurar tomar consciência da importância de o gerirmos bem para nossa construção pessoal e da comunidade. É bom perguntar-nos em que medida as nossas decisões derivam unicamente da resposta que precisamos de dar às necessidades imediatas ou se se inspiram em projetos de vida abertos à largueza do horizonte para onde a linha do tempo nos orienta.
Quanto mais nos organizarmos em função do horizonte para onde caminhamos, tanto mais descobriremos que a procura de resultados imediatos não pode ser o primeiro critério das nossas decisões. Mais ainda, sentiremos que, em certas ocasiões vale a pena saber perder para aceder a resultados mais elevados. Cumpre-se, assim, a recomendação evangélica, que diz: “Em verdade vos digo, se o grão de trigo cair na terra e não morrer, fica só ele; mas, se morrer, dará muito fruto. Quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; mas quem, neste mundo, aceitar perder a sua vida, ganhá-la-á para a vida éterna” (Jo.12, 24-25).
Nestes tempos de preparação próxima para a Páscoa, fazemos votos para que o exemplo de Cristo que ofereceu a sua vida voluntáriamente pelo bem de todos possa inspirar as decisões que devem ser tomadas, nestes tempos conturbados e de muito sofrimento, de tal maneira que saibamos perder agora para ganhar depois.
3.4.2020
+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda