Domingo de Ramos-2020

Domingo de Ramos-2020

Domingo de Ramos-2020

Homilia de D. Manuel Felício

 

Iniciamos a Semana Santa, com o Domingo de Ramos. É uma semana toda ela para lembrarmos e celebrarmos os mistérios da Paixão, Mor­te e Ressurreição do Senhor.

Ora, toda a vida histórica de Jesus foi uma preparação para estes acon­tecimentos finais, mostrando um conflito permanente e progres­si­vo entre o que Jesus veio para propor, em nome de Deus Pai e a bem da Humanidade, por um lado e, por outro, os hábitos sociais e os interesses instalados sobretudo na classe dominante dos príncipes dos sacerdotes. Esse conflito latente e que se foi progressivamente tornando mais claro manifestou-se também nas distintas atitudes das pessoas e dos grupos perante a mensagem e as atuações de Jesus, com contrastes evidentes em muitas situações.

 

Hoje, Domingo de Ramos, esse contraste e verdadeiro paradoxo apa­rece-nos na própria Liturgia. Liturgia que começa com o entusiasmo das multidões a acolher Jesus, com sua entrada triunfal em Jerusalém, mas depois muda de tom e continua com o relato da sua Paixão e Morte imposta pelos interesses dos judeus.

 

2.Nest Domingo de Ramos, que também chamamos II Domingo da Pai­xão, a nossa atenção concentra-se, de facto, na escuta e meditação do relato da Paixão e Morte de Jesus, este ano, na versão do evange­lista S. Mateus. Ora, este quadro da Paixão e Morte de Jesus vai-nos acompanhar toda a Semana Santa. Na Sexta-Feira, a Liturgia volta a apresentar-nos novamente a leitura do mesmo quadro, então segun­do o evangelista S. João e pelo meio, durante os próximos dias ficam passagens bíblicas de preparação e comentário aos mesmos episó­dios, incluindo as referentes à Última Ceia, na Quinta-Feira.

 

Olhando para o quadro da Paixão que hoje nos é apresentado, o que vemos nós imediatamente?

Começa pela traição de Judas que entrega Jesus pelo vil metal, na quantia aviltante de 30 dinheiros; dinheiros que ele nem sequer chegou a utilizar, pois o remorso lho impediu.

Continua com a referência à Última Ceia de Jesus com os seus discí­pulos, que antecipa o drama da mesma  Paixão.

A  agonia de Jesus no Jardim das Oliveiras é reveladora da sua pro­fun­da relação com o Pai, sem esconder a dureza e a violência do sofrimento que ele antevê.

Se a traição de Judas foi fonte de grande sofrimento para Jesus, não o foi menos o abandono dos discípulos e sobretudo a negação de Pedro, por três vezes e com progressiva veemência – primeiro procurando mudar de assunto, depois negando formalmente e a seguir recorrendo a imprecações ou palavrões, como hoje diríamos.

A sentença pronunciada pelo Tribunal Religioso presidido pelo Sumo Sacerdote Caifás não trouxe nada de novo e foi o que se previa, a sua condenação à morte, em nome da lei.

O Tribunal civil presidido por Pilatos não fugiu à regra, pois a defesa do lugar e do prestígio de governador sobrepuseram-se ao reconhe­ci­mento da verdade e à aplicação da justiça. Deixou-se manobrar pela pressão popular instigada pelos príncipes dos sacerdotes. E nem sequer os receios da sua mulher, atormentada em sonhos pela condenação á morte do justo, o demoveram. A sua falta de carácter revela-se no lavar das mãos, para aparentemente se desresponsa­bilizar daquela injustiça que o próprio reconheceu como tal. Nem a manobra de soltar Barrabás, um malfeitor reconhecido como tal, o conseguiu impedir de passar à história como o protótipo do juiz iníquo que sujeita verdade e a justiça aos seus interesses.

E entregou Jesus para ser crucificado depois de o mandar flagelar.

No caminho do calvário, que nós revivemos sempre  que celebramos a Via-Sacra, contemplamos Jesus com a cruz às costas, abandonado de todos, a começar pelos seus amigos mais diretos, os discípulos, e objeto de todas as formas de insultos e impropérios. Nem sequer a requisição do Cireneu  para o ajudar representa qualquer espécie de compaixão, pois foi tão só para acautelar que Jesus chegasse ao fim com vida e em condições de ser crucificado.

A crucifixão e a morte continuaram envolvidas em toda a espécie de  incompreensões e ultrajes e só vemos, ao longe, as mulheres que o acompanharam desde a Galileia, entre elas a sua mãe.

O grito de Jesus no alto da cruz, ladeado dos dois salteadores igual­mente condenados, e exclamando – “Meu deus, meu Deus, porque me abandonaste?” – é a sua oração de entrega ao Pai, que havemos de saber relacionar com a outra que ele também fez na agonia do Jardim das Oliveiras – “Afasta de mim este cálice; mas não se faça a minha vontade, mas a tua”.

Imediatamente a seguir  à Morte, inicia-se a série dos sinais, mesmo antes do sinal por excelência que é a saída do Sepulcro com a Res­surreição, sinais esses que haviam de levar as pessoas bem intenci­onadas, incluindo os discípulos, a reconhecer que, na realidade, ele não era o mal-feitor como tal julgado pelos tribunais, mas sim o Filho de Deus Salvador. E o primeiro a reconhecê-lo nessa sua condição de Filho de Deus, por estranho que pareça, foi um pagão, o centurião.

 

4. Perante a morte deste inocente claramente reconhecido como jus­to e contrariamente ao que decidiram os tribunais, que assim come­te­ram a injustiça das injustiças, naturalmente que nos pergunta­mos pelo porquê de tudo isto assim ter acontecido.

Ora, a I leitura hoje escutada apresenta-nos um dos vários poemas do Servo de Javé, que Isaías descreve como modelo do que seria o Messias e começa a levantar o véu da resposta a este  enigma da condenação de Jesus. Segundo Isaías, o Servo de Javé é enviado por Deus com o desígnio de fazer bem sem olhar a quem, mesmo que isso implique a recusa de recorrer a qualquer espécie de violência. Por isso, não responde aos que o insultam e até apresenta a outra face aos que lhe batem.

Por sua vez, a leitura da carta aos Filipenses apresenta-nos a explicação clássica da morte de Jesus, que foi voluntária antes de lhe ser imposta. Ele, que era de condição divina, tomou a decisão de se abaixar até á nossa condição humana e até ao limite da morte na cruz. Mas Deus fez-lhe justiça

 

4. O Domingo de Ramos e os dias de Semana Santa que se seguem são também para nós convite a meditarmos na morte deste justo, Filho de Deus Salvador.

E também vamos procurar encontrar na sua Morte a chave de leitura de tantos sofrimentos que nos atingem e pelos quais, sobretudo neste momento, passa a Humanidade inteira.

De facto, o sofrimento e a morte fazem parte da nossa vida. E este justo, com o seu sofrimento e a sua morte, vem dizer-nos que não está neles a última palavra. Essa última palavra é a vida nova de ressuscitados, como Cristo ressuscitou.

Por sua vez, diz-nos também que o sofrimento e a morte podem ser vividos  como ato de serviço pelos outros, como o foi o  sofrimento redentor do próprio Cristo.

Como aconteceu com Jesus, também em nós é natural a recusa do sofrimento e com ele dirigimos a Deus, neste momento a nossa prece, em nome de roda a Humanidade – Pai afasta de mim este cálice; e também como ele havemos de saber cuidar a atitude de não colocarmos a nossa vontade e o nosso interesse acima de tudo.

O grito de Jesus na Cruz – “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” - é natural que seja também aquele que a Humanidade sente  neste momento  de crise e pandemia.

Esta é a oração que Jesus dirige ao Pai, no ato supremo de lhe entregar a sua vida. E convém relembrar a sua relação com a oração da agonia, no Jardim das Oliveira, em que num primeiro momento aparece a dureza do sofrimento, mas, a seguir, sobrepõe-se a decisão de não colocar a vontade própria acima de tudo, mas a vontade do Pai.

Que esse grito seja de confiança e não de revolta é o que pedimos para toda a Humanidade ao Pai, neste momento de sofrimento e dor para todos nós.

 

5.4.2020, Domingo de Ramos

 

+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda