Tempos de crise (21) Tempo para acordar

Tempos de crise (21) Tempo para acordar

 

Fomos obrigados a parar e a olhar, a partir de fora do ritmo da vida diária, para muitos dos nossos comportamentos pes­soais e também sociais.

E estamos  a reconhecer um generalizado adormecimento das pessoas e também das estruturas sociais relativamente aos aspectos mais importantes da vida coletiva com efeitos no verdadeiro bem estar de todos.

Este é o momento para acordarmos e ajudarmos a própria sociedade, no conjunto das suas estruturas de funcionamen­to, a acordar também.

 

Sobre a necessidade de acordar para interpretarmos bem a realidade que nos envolve, feita de relações das pessoas en­tre si e com a natureza, somos convidados, neste tempo de Páscoa, a visitar a passagem bíblica do Evangelho de S. Lucas 24, 13-35.

Os discípulos, depois da grande desilusão que tiveram com o seu Mestre, de quem esperavam êxitos políticos, económicos  e sociais, mas que morreu numa cruz, abandonaram este so­nho e regressavam às suas anteriores ocupações. São sur­pre­en­didos por um novo viandante que lhes abre os olhos para saberem ler bem os desígnios da história, à luz da men­sagem bíblica. Os olhos abrem-se-lhes, durante a refeição, a sua vida dá uma volta completa e regressam ao sonho que estavam na disposição de abandonar.

 

Também nós hoje precisamos de abrir os olhos, de acordar bem, despertando da letargia que nos tem vindo a ser im­pos­ta por modelos de vida que, em si mesmos, são falsos, mas o certo é que têm vindo a convencer a generalidade das pessoas.

Podemos comparar esta situação aos efeitos do pecado es­tru­tural.

Se bem que a origem do pecado, como de todo o mal consci­entemente praticado, está em decisões concretas de pessoas concretas, o certo é que há estruturas sociais e práticas mui­to comuns que incentivam, ou pelo menos não desincen­ti­vam, certos ideais de vida em sociedade e benefícios econó­micos, que, por um lado favorecem indevidamente interes­ses de pessoas e grupos determinados e por outro são contra o bem comum. Por trás, estão geralmente grupos de interes­ses inconfes­sa­dos.

Estas  influências sociais e estruturais chegam a meter-se com a formação das consciências; por um lado, colocando à frente interesses contrários ao verdadeiro bem pessoal e, por outro, fazendo esquecer os critérios morais de que de­pende a promoção  do bem comum, que, por princípio, deve estar sempre em primeiro lugar.

E tudo isto vai acontecendo à escala global, aproveitando o generalizado adormecimento das pessoas, até que surja qual­quer choque que as faça a acordar.

 

A crise que estamos a viver pode ser esse choque que nos leva a despertar do sono, a abrir bem os olhos, para  procu­rarmos identificar as mudanças pessoais e sociais neces­sá­rias e porventura ajudarmos as estruturas da sociedade a voltarem para aí a sua atenção e os seus incentivos.

Está em causa denunciarmos a perversidade de ideais so­ci­ais adoptados pelo comum das pessoas e também de mui­tos incentivos económicos contrários ao bem comum.

É preciso tudo fazer para substituir a lógica do pecado social por outra lógica, que podemos chamar a lógica do bem para todas as pessoas.

Que esta Páscoa nos ajude a abrir bem os nossos olhos para vermos e ajudarmos a ver os novos caminhos que temos de percorrer para equilibrar e dar verdadeira sustentabilidade à vida comunitária.

 

15.4.2020

+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda