Em tempos de pandemia - Saber ver com olhos de ver
Obrigados a parar pelas condições da pandemia, temos agora mais possibilidade de olhar para a nossa vida pessoal e para a vida do mundo, com outros olhos, incluindo a forma como cuidamos a casa comum em que habitamos, isto é, a natureza.
A verdade é que o ritmo diário, com a sua rede de relações e dependências, que a agenda e as obrigações de trabalho nos impõem, impedem-nos, muitas vezes, de olhar para as dimensões mais importantes da nossa vida e para a complexidade do mundo que habitamos, incluindo a natureza, que generosamente nos oferece os seus recursos. Os homens sonharam legitimamente com uma vida mais aliviada de compromissos tarefeiros, e bem, graças à introdução de máquinas e sobretudo de tecnologias avançadas no processo produtivo. Mas, de facto, aconteceu o contrário. Passou a ser a máquina a impor o ritmo do trabalho das pessoas, o que tem resultado em sobrecarga para todos. E quando o modelo e a medida da vida em sociedade passaram a ser definidos simplesmente em termos de produção e consumo, com o mercado pelo meio, a impor regras sem ética, cada vez mais penalizadoras da esmagadora maioria dos cidadãos, tudo resultou pior. Por isso, temos que abrir bem os olhos. E se o fizermos, descobriremos outras dimensões, as mais importantes, da nossa vida pessoal, mas também da vida em sociedade e sobretudo quais as grandes opções que comandam, de facto, os ritmos da vida a nível global e que têm de ser mudadas para termos qualidade e garantirmos futuro.
Como é sabido, o Papa Francisco, em 2015, sensivelmente meio ano antes de Cimeira de Paris sobre o Clima, publicou a encíclica Laudato Sí sobre a responsabilidade dos humanos nas mudanças climáticas que nos estão a ameaçar, à escala global. Convida-nos nela a ver com olhos de ver várias mudanças que já estão a acontecer e que, se nada for feito, põem em risco o futuro da vida no mundo. E os efeitos dessas mudanças, muito penalizadoras para a vida das pessoas, começam a sentir-se com muita clareza, a começar pelas condições de vida nos países mais pobres. São muitos os sintomas desta doença, da qual ninguém está livre, apesar de haver quem queira fechar os olhos à realidade, negando a sua existência
Por isso, nessa encíclica, o Papa faz a seguinte denúncia: “Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder económico ou político parecem concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns impactos negativos das mudanças climáticas. Mas muitos sintomas indicam que tais efeitos poderão ser cada vez piores, se continuarmos com os modelos atuais de produção e consumo” (nº 26).
O que aqui está em causa é o facto de alguns, quase sempre os mais influentes, cederem à tentação de, como lembra o ditado popular, “tapar o sol com a peneira” e adiarem os problemas, na vez de invéstirem na sua solução. A realidade, porém, está a fazer-nos ver que, se nada fizermos, o pior virá aí, certamente. E também aqui se poderá aplicar o ditado popular que diz: “Deus perdoa sempre, os homens às vezes, a natureza nunca”.
Precisamos de definir e assumir conjuntamente as regras necessárias para resolver bem o problema e, nesta matéria, não podemos confiar cegamente nas tecnologias que estão a ser aplicadas, as quais, muitas vezes, não obedecem sequer às conclusões científicas independentes, mas antes aos senhores do dinheiro fácil. Por isso, o Papa faz mais a seguinte denúncia, que todos precisam de levar a sério para defesa do bem comum. Diz ele, a propósito: "A tecnologia, que, ligada à finança, pretende ser a única solução dos problemas, é incapaz de ver o mistério das múltiplas relações que existem entre as coisas e, por isso, às vezes resolvem um problema criando outros” (nº20).
Neste tempo de Páscoa somos convidados a não ter medo da luz e a recusar a tentação de escolhermos a comodidade das trevas, para não nos obrigarmos às mudanças necessárias. Vale a pena atender a este convite para vermos outras dimensões da vida e do mundo, quase sempre as mais importantes, que certos interesses teimam em esconder (ler passagem bíblica do Evangelho de João 3, 16-21).
22.4.2020
+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda