Em tempos de pandemia (27)  - Saber ver com olhos de ver

Em tempos de pandemia  - Saber ver com olhos de ver

 

Obrigados a parar pelas condições da pandemia, temos agora mais possibilidade de olhar para a nossa vida pessoal e para a vida do mundo, com outros olhos, incluindo a forma como cuidamos a casa comum em que habitamos, isto é, a natureza.

A verdade é que o ritmo diário, com a sua rede de relações e depen­dências, que a agenda e as obrigações de trabalho nos impõem, impe­dem-nos, muitas vezes, de olhar para as dimensões mais importantes da nossa vida e para a complexidade do mundo que habitamos, inclu­in­do a natureza, que generosamente nos oferece os seus recursos. Os ho­mens sonharam legitimamente com uma vida mais aliviada de compromissos tarefeiros, e bem, graças à introdução de máquinas e sobretudo de tecnologias avançadas no processo produtivo. Mas, de facto, aconteceu o contrário. Passou a ser a máquina a  impor o ritmo do trabalho das pessoas, o que tem resultado em sobrecarga para todos. E quando o modelo e a medida da vida em sociedade passaram a ser definidos simplesmente em termos de produção e  consumo, com o mercado pelo meio, a impor regras sem ética,  cada vez mais penalizadoras  da esmagadora maioria dos cidadãos, tudo resultou pior. Por isso,  temos que abrir bem os olhos. E se o fizermos, desco­bri­remos outras dimensões, as mais importantes, da nossa vida pes­soal, mas também da vida em sociedade e sobretudo quais as grandes opções que comandam, de facto, os ritmos da vida a nível global e que têm de ser mudadas para termos qualidade e garantirmos futuro.

Como é sabido, o Papa Francisco, em 2015, sensivelmente meio ano antes de Cimeira de Paris sobre o Clima, publicou a encíclica Laudato Sí sobre a responsabilidade dos humanos nas mudanças climáticas que nos estão a ameaçar, à escala global. Convida-nos nela a ver com  olhos de ver várias mudanças que já estão a acontecer e que, se nada for feito, põem em risco o futuro da vida no mundo. E os efeitos dessas mudanças, muito penalizadoras para a vida das pessoas, começam a sentir-se com muita clareza, a começar pelas condições de vida nos países mais pobres. São muitos os sintomas desta doença, da qual ninguém está livre, apesar de haver quem queira fechar os olhos à realidade, negando a sua existência

Por isso, nessa encíclica, o Papa faz a seguinte denúncia: “Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder económico ou político parecem concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns impactos nega­tivos das mudanças climáticas. Mas muitos sintomas indicam que tais efeitos poderão ser cada vez piores, se continuarmos com os modelos atuais de produção e  consumo” (nº 26).

O que aqui está em causa é o facto de alguns, quase sempre os mais influ­entes, cederem à tentação de, como lembra o ditado popular, “tapar o sol com a peneira” e adiarem os problemas, na vez de invés­tirem na sua solução. A realidade, porém, está a fazer-nos ver que, se nada fizermos, o pior virá aí, certamente. E também aqui se poderá apli­car o ditado popular que diz: “Deus perdoa sempre, os homens às vezes, a natureza nunca”.

Precisamos de definir e assumir conjuntamente as regras necessárias para resolver bem o problema e, nesta matéria, não podemos confiar cegamente nas tecnologias que estão a ser aplicadas, as quais, muitas vezes, não obedecem sequer às conclusões científicas independentes, mas antes aos senhores do dinheiro fácil. Por isso, o Papa faz mais a seguinte denúncia, que todos precisam de levar a sério para defesa do bem comum. Diz ele, a propósito: "A tecnologia, que, ligada à finança, pretende ser a única solução dos problemas, é incapaz de ver o mistério das múltiplas relações que existem entre as coisas e, por isso, às vezes resolvem um  problema criando outros” (nº20).

Neste tempo de Páscoa somos convidados a não ter medo da luz e a recusar a tentação de escolhermos a comodidade das trevas, para não nos obrigarmos às mudanças necessárias. Vale a pena atender a este convite para vermos outras dimensões da vida e do mundo, quase sempre as mais importantes, que certos interesses teimam em esconder (ler passagem bíblica do Evangelho de João 3, 16-21).

 

22.4.2020

 

+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda