Em tempos de pandemia - Trocar a verdade pelo interesse, não.
A pandemia trouxe-nos tempos especiais, em que também somos confrontados com realidades especiais, a pedirem opções novas e mais capazes de garantirem futuro melhor para todos.
Uma dessas opções versa sobre o uso dos combustíveis fósseis. Há muito que os observadores a partir da ciência vêm chamando a atenção para a necessidade de substituir estas energias por outras mais amigas do ambiente, as chamadas energias renováveis.
Apesar de tudo, os mais responsáveis pelas políticas energéticas, a nível mundial, têm vindo a fazer ouvidos de mercador a estas recomendações, continuando com fortes apostas de investimento nas petrolíferas. Damos como exemplo o facto de em 2019 ter havido, nos Estados Unidos investimentos privados na ordem dos sessenta mil milhões de dólares para exploração de petróleo.
Saudando o esforço que está a ser feito, em muitos países do mundo e também na Europa dos 27, sobre a definição de políticas e prazos para reduzir a zero o uso das energias não recomendadas, o certo é que o capitalismo, pelo menos nas suas expressões mais duras, tem procurado travar estes caminhos em troca de rendimentos mais rápidos e sem restrições.
Mas aquilo que os homens com a sua inteligência não souberam ou não quiseram resolver, em linha com os dados da realidade cientificamente comprovada, está agora a encarregar-se de o fazer a pandemia. Com a descida brusca da procura da petróleo nos mercados, o seu preço, sobretudo na América do Norte, está agora em níveis que de modo algum eram espetáveis no início deste ano. Desceram pelo menos 30% e, por isso, muitas empresas, sobretudo as de menor dimensão, arriscam a bancarrota. Nos Estados Unidos, os reguladores de marcado admitem pagar a empresas para deixarem de explorar. E há países a passarem por especiais dificuldades, sobretudo os chamados “petro-estados”, ou seja países com as suas economias muito dependentes da exploração e venda do petróleo, no número dos quais está, por exemplo, Angola.
Esta é a hora de os responsáveis pelas políticas energéticas assumirem a coragem de colocar a verdade acima dos interesses.
E tem havido alguns avisos vindos do mundo da ciência que é preciso levar a sério para combater a tentação de encobrir a verdade dos factos, mesmo cientificamente reconhecida, com o peso dos interesses. As recomendações que chegam do mundo da ciência são muito claras, nomeadamente ao referirem que o recurso sistemático às energias fósseis não é caminho para dar sustentabilidade à economia nem superar as suas crises. E isto, “porque os fósseis são uma âncora genocida que arrasta a humanidade para o fundo”, diz o investigador em alterações climáticas João Camargo.
Há mesmo já quem recomende à empresa petrolífera portuguesa GALP para aproveitar esta oportunidade e redirecionar o seu investimento para as energias renováveis, em vez das refinarias que tem a funcionar em Matosinhos e em Sines.
Este é, de facto, um problema global, cuja solução exige a cooperação de todos. Por isso, o Papa Francisco, na encíclica “Laudato Sí” faz um convite urgente ao mundo para “renovar o diálogo sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental que vivemos e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós”. E a seguir denuncia as atitudes mais comuns de solução que vão “da negação do problema à indiferença, à resignação acomodada ou à confiança cega nas soluções técnicas” (nº 14).
Os factos com que já estamos a ser confrontados devem ser suficientes para levarmos todos a sério este convite do Papa, rejeitando a atitude da avestruz, que mete a cabeça na areia.
A Páscoa que continuamos a viver dá-nos razões acrescentadas para sabermos colocar sempre a verdade acima dos interesses, diferentemente do que fizeram as autoridades judaicas, que resolveram matar os apóstolos só porque a sua mensagem não lhes convinha (ver passagem bíblica de Atos dos Apóstolos 5, 27-33).
23.4.2020
+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda