Em tempos de crise (33) - Desfazer dependências para reforçar a liberdade
As pessoas vivem sujeitas a variadíssimas dependências que condicionam a sua vida. Algumas, com efeitos mais visíveis, como é o caso das drogas mais ou menos duras, do álcool ou simplesmente do tempo que ocupam diante do écran e na internet. Sobretudo as primeiras são dependências terríveis, verdadeiros flagelos humanos, familiares e sociais, com consequências desastrosas.
Mas há dependências menos visíveis e também muito prejudiciais à vida das pessoas. Estas podem ser afetivas ou outras, como o vício do jogo, tanto caseiro como em casas próprias ou simplesmente a dependência de hábitos instalados, que nos impedem de exercer a nossa liberdade de escolha sobre a construção do autêntico bem estar tanto pessoal como social.
Não tenhamos dúvida: a dependência quando se instala na vida de qualquer pessoa escraviza-a e dita-lhe comportamentos desajustados dos quais dificilmente sozinha se pode libertar. É, por isso, importante começar por dar atenção às formas de dependência que existem, não se vêem a olho nu, mas de facto, vão corroendo a vida das pessoas, isolando-as sobretudo de seus familiares e amigos e fazendo-as entrar numa espécie de autismo, no qual só se escutam a si mesmas, à sua sensibilidade e às suas elementares inclinações.
Este tempo, que nos retém confinados em casa e, de certo, vai continuar, a partir de sábado próximo, dia 2 de maio, é boa oportunidade para identificarmos na nossa vida e porventura na vida dos que nos estão mais próximos os sinais dessas dependências. Para isso justifica-se fazer exame de consciência sobre o uso do tempo e do dinheiro que temos, procurando saber se os gastamos de forma desordenada ou se o seu uso está sujeito a alguma dependência. Alguns dizem que o tempo é dinheiro; nós dizemos que são bênção; bênção essa sujeita à nossa administração responsável.
É bom que este esforço de leitura, quanto possível, não seja apenas individual, mas possa contar com a ajuda de quem está mais próximo de nós, a começar pela nossa família. E também é aconselhável que essa leitura se alargue e possa abranger outras pessoas, mais ou menos relacionadas connosco, se for o caso de necessitarem da nossa ajuda.
Uma coisa é certa, romper com dependências que se instalaram na nossa vida, muitas vezes com incentivos de outras pessoas e grupos, é o único caminho para se recuperar o entusiasmo pela vida e o sentido do autêntico bem pessoal e dos outros.
Uma das dependências elementares que muito condicionam a vida das pessoas e das comunidades é o peso das tradições. As tradições e os hábitos sociais geralmente protegem determinados valores e desempenham importante papel sobretudo na organização da vida comunitária com inevitáveis consequências na vida de cada um. Todavia, exigem da parte das pessoas capacidade de discernimento para distinguir o que é de manter do que é de rejeitar. Precisamos de criatividade e inovação para acompanharmos os novos tempos e para sabermos ajustar-lhes os valores de sempre, sem ficarmos prisioneiros de condicionamentos passados. O que está em causa é vivermos nos dias de hoje bem abertos para o sonho da vida em plenitude.
Para vencer a dependência das tradições e enveredar por caminhos de inovação e criatividade, o Papa Francisco aconselha a abandonar o critério cómodo de “fez-se sempre assim”. Convida, em contrapartida, a sermos “ousados e criativos na tarefa de repensar os objetivos, as estruturas, o estilo e os métodos das nossas comunidades”. Por sua vez, continua avisar-nos, não basta definir bem os objetivos, pois é preciso incentivar a procura comunitária dos meios para os alcançar, pois de outro modo o risco é a fantasia (cfr. Exortação apostólica Evangelii Gaudium, nº 33).
De facto, uma vida saudável em toda a linha exige o desfazer de muitas dependências, como também a procura dos melhores meios para as superar e progredir na vida pessoal e comunitária com qualidade.
Este tempo especial é também para investirmos nesta procura.
30.4.2020
+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda