Em tempos de pandemia - “Há males que vêm por bem”
Com este ditado, a sabedoria popular ensina-nos que do mal acontecido podem sempre tirar-se algumas boas consequências.
Ora, é verdade que a pandemia fez parar o mundo. Fechou as pessoas em casa e transformou as ruas e praças em deserto. Imagens impressionantes continuam a chegar-nos de todas as partes do mundo, com grandes cidades sem qualquer alma viva à vista, os comércios e outros serviços fechados e o mesmo acontecendo com as unidades de produção.
Estamos já a adivinhar como nos vai aparecer o recinto do Santuário de Fátima, no próximo dia 13 de maio, habituados que estamos às grandes peregrinações neste aniversário das Aparições.
De facto, e honra lhes seja feita, as pessoas souberam interpretar bem os indicadores da pandemia e as ordens das autoridades, com muito raras exceções. E esse é elogio devido à população em geral. As exceções, também neste caso, confirmam a regra.
Podemos, desde já, adiantar que a todos nos está a fazer bem esta paragem. Porque pusemos em ordem assuntos importantes sistematicamente protelados na nossa vida pessoal, porque demos mais tempo à família e às relações humanas em geral, também através de meios técnicos que antes não existiam. Porque tivemos tempo para considerar dimensões da vida, e quantas vezes as mais importantes, que o burburinho diário faz esquecer. E também porque fica posta em questão a obrigatoriedade de nos sujeitarmos a modelos e hábitos de vida em sociedade até agora inquestionáveis. Provámos a nós mesmos que não é nenhum ato sagrado a ida diária ao café, a utilização de restaurantes, a frequência de bares noturnos e diurnos ou de salas de espetáculos, ou simplesmente grandes concentrações a céu aberto para concertos ou eventos desportivos.
E mesmo a vida da Fé pode sair a ganhar, quando obrigatoriamente se tem de desligar do ritmo diário, semanal ou outro de celebrações mais ou menos multitudinárias. De facto, os fiéis tiveram e continuam a ter oportunidade de conquistar outra profundidade. Lembro, a propósito, o apelo ontem feito pelo Reitor do Santuário de Fátima para que, dado o impedimento de haver peregrinos no recinto durante as celebrações do Treze de Maio, as peregrinações físicas, a pé ou em outros meios de transporte, a que já estamos habituados nesta semana, sejam substituídas pela verdadeira peregrinação espiritual que cada um é chamado a fazer dentro de si mesmo para bem pessoal e dos outros. Por isso, nos deixou a sugestão de fazermos desta peregrinação espiritual como que uma grande procissão de velas que abranja o país inteiro.
E certamente que os grandes responsáveis pela condução das causas públicas em cada país, na Europa e no mundo, já fazem contas não apenas aos estragos causados pela pandemia, com consequências ainda pouco avaliadas e muito imprevisíveis, mas também aos novos caminhos que estão a ser sugeridos e começam a ser entendidos, de que é sinal a tentativa em curso de envolver o mundo todo na procura do remédio antídoto para o virus. E que seja uma solução de facto beneficiária de todos, pois desta crise ou saem todos a ganhar ou todos perdem, como os factos o estão a demonstrar. Daí, a campanha global de angariação de fundos para conseguir a receita considerada necessária de 7,5 mil milhões de euros.
Passou-se coisa parecida com a primeira geração cristã. A perseguição que se instalou em Jerusalém, logo no início, e que, entre outros, sacrificou Santo Estêvão, levando-o à morte por apedrejamento, obrigou os cristãos a deixarem esta cidade berço e a distribuir-se pelo mundo, procurando refúgio sobretudo nas colónias judaicas espalhadas pala bacia do Mediterrâneo. Esta, de facto, foi a grande oportunidade que o cristianismo nascente soube aproveitar para não ficar prisioneiro das tradições e costumes judaicos, abrindo-se à globalidade e conquistando o seu estatuto de católico. E de tal modo que o nome de cristãos foi dado aos seguidores de Cristo numa cidade estrangeira, Antioquia da Síria (ver Atos dos Apóstolos, 11,19-26).
De facto, o Povo tem razão ao cunhar o ditado ”Há males que vêm por bem”.
5.5.2020
+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda