Em tempos de pandemia (38) - Redescobrir o caminho da verdade e da vida
Nestes tempos especiais impostos pela pandemia somos convidados a rever as traves mestras que sustentam a forma como programamos a nossa vida. Um olhar atento para o que se passa à nossa volta dá-nos conta de como, em muitas situações, a verdade das pessoas, das coisas que administramos e da própria natureza, qual casa comum que habitamos, não é colocada no seu devido lugar. Com frequência, é substituída por interesses instalados que, de facto, determinam, quantas vezes nos bastidores do palco da vida social, as decisões e as leis.
Sobre este grave risco, o Papa Francisco na exortação apostólica “Gaudete et exultate” (ano de 2018) avisa-nos assim: “O consumismo hedonista pode-nos enganar, porque, na obsessão do divertimento, acabamos por estar excessivamente concentrados em nós mesmos, nos nossos direitos e na preocupação exacerbada de termos tempo livre para gozar a vida. Será difícil que nos comprometamos e dediquemos energias a dar a mão a quem passa mal, se não cultivarmos uma certa austeridade, se não lutarmos contra esta febre que a sociedade nos impõe para nos vender mais coisas, acabando por nos transformar em pobres insatisfeitos, que tudo querem ter e provar” (nº108).
Nesta passagem, o Papa retrata-nos bem um certo modo de vida, hoje muito espalhado e promovido com muita arte, para desviar a atenção das pessoas do que realmente interessa a todos e orientá-la simplesmente para o consumo sempre muito sujeito aos interesses de alguns. De facto, a obsessão pelo divertimento e o tempo livre para lá orientado, assim como a excessiva concentração das pessoas em si próprias leva a esquecer o mais importante que é a dignidade pessoal e dos outros e ainda a não se poder experimentar a alegria de estender a mão a quem precisa. Essa tal febre que nos é imposta pela própria sociedade para nos vender coisas, necessárias ou mesmo não, acaba por fazer de nós esses pobres insatisfeitos que tudo querem ter e provar. E assim, o mundo cada vez fica mais dividido entre os ricos que têm demais e os pobres que têm pouco ou nada, mas sempre com a aspiração de serem ricos para fazerem como os primeiros.
Estes tempos de pandemia já nos obrigaram a parar. Queira Deus que possam também ser aproveitados para redescobrirmos o caminho da verdade autêntica que queremos seja o eixo das nossas vidas.
Assim, a verdade das pessoas implica reconhecer em cada uma delas o sonho de ser sempre mais, que é diferente da ambição de ter sempre mais; e um horizonte de realização pessoal e em comunidade que supere sempre as metas de facto atingidas. Por sua vez, a verdade de cada pessoa está também nas relações estabelecidas com as outras pessoas e com a consciência de que estamos aqui não porque o decidimos, mas porque outro alguém decidiu por nós.
Por sua vez a verdade das coisas que administramos é que elas fazem arte de um património que nós não criámos, mas herdámos para o usarmos bem: se possível o valorizarmos e transmitirmos, com mais valias, ao futuro. Por sua vez, não podemos esquecer que não somos donos do mundo e concretamente da natureza, que é colocada à nossa disposição para a usarmos com responsabilidade.
A pandemia está a fazer desmoronar muitas certezas que até há pouco considerávamos inquestionáveis. E o convite aí está para levarmos a sério o fim de muitas dessas certezas e aceitarmos o desafio de procurar novos modelos de vida bem ancorados na verdade das pessoas, das coisas que administramos e da própria natureza.
8.5.2020
+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda