V Domingo da Páscoa

V Domingo da Páscoa

10.5.2020

 

Celebramos o V Domingo da Páscoa, ainda impedidos de participar nas habituais assembleias eucarísticas, o que con­tinua a ser para todos nós grande provação. Todavia, a Ressurreição do Senhor, ponto essencial da nossa fé, que­remos celebrá-la com alegria e vontade de nos ajus­tarmos cada vez mais, Àquele que nos aponta o caminho da vida.

 

O Evangelho de hoje, segundo S. João, apresenta-nos Jesus a preparar os discípulos para continuarem no mundo a Sua missão. Diz-lhes com clareza que vai partir do meio deles, porque vai preparar-lhes um lugar, junto do Pai.

Mas, certamente adivinhando a sua tristeza, adianta tranqui­li­zadoras palavras de consolação, dizendo: “Não temais, não se perturbe o vosso coração, porque virei novamente para vos levar comigo”.

Jesus cria, assim, aqui um espaço intermédio, entre esta e a outra vinda, que é o tempo da responsabilidade dos discípulos. E as perguntas que dois dele lhe fazem – Tomé e Filipe - com as respetivas respostas dão-nos as indicações importantes sobre como deve ser vivida essa responsabili­dade, neste que é o seu tempo. Em primeiro lugar, deverão seguir, o mais possível, o modelo comunhão existente entre Jesus e o Pai, no seio da Santíssima Trindade. De facto, esse modelo de comunhão faz deles pedras vivas de um edifício espiritual novo que tem o mesmo Jesus como pedra angular, conforme afirm S. Pedro. Esse edifício é a Igreja. Voltando às recomendações de Jesus, o caminho a seguir pelos discípulos neste seu tempo está traçado por Ele mesmo, que é o caminho, a verdade e a vida. Portanto, todos os percursos que possam ser definidos têm de levar a marca do fazer como Jesus, mas mais ainda, do sentir e do ser como Ele.

 

Os Atos dos Apóstolos apresentam-nos hoje um dos primei­ros ensaios da forma como os doze interpretaram o segui­men­to de Jesus, entendido como o tal caminho que conduz à verdade e à vida.

Voltemos para aí agora a nossa atenção e  vejamos.

Surge um  problema na comunidade – os helenistas queixa­vam-se de que as suas viúvas não eram devidamente atendi­das, no exercício da caridade cristã.

Para resolver este problema, os doze, atuando como corpo ou colégio, convocam a assembleia da comunidade.

Expõem-lhe o assunto a decidir juntamente com os critérios que devem presidir à decisão. O que estava em causa era acrescentar um novo serviço àqueles que já eram praticados, nomeadamente  pelos apóstolos, com o serviço da Palavra e da Oração. Era necessário quem se dedicasse a este novo serviço das mesas, atendendo devidamente as viúvas.

Para esse efeito, os grupo dos doze pede à assembleia da comunidade que indique 7 homens, de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de Sabedoria.

A proposta agradou-lhes e escolheram esses 7 homens, com Estêvão à frente.

Por sua vez, os apóstolos, com toda a comunidade em jejum e oração, impuseram-lhes as mãos e o ministério ficou cons­ti­tuído e ao serviço.

 

Este ensaio da primitiva comunidade cristã continua a ser a grande regra de funcionamento das nossas comunidades para que se mantenham vivas e capazes de prestar ao mundo de hoje o serviço da evangelização.

Também hoje precisamos de ministérios e serviços para res­ponder às várias necessidades, algumas de sempre, outras novas e diferentes, de lugar para lugar, de uns tempos para outros tempos.

Tal como para a primitiva comunidade cristã, a determi­na­ção sobre os ministérios necessários tem de obedecer aos mesmos dois fatores presentes naquela assembleia convocada pelos apóstolos, a saber: identificar as necessidades da comunidade naquele momento e naquele lugar, contar com a luz e a condução do Espírito Santo.

Por sua vez, o processo da decisão, sejam quais forem as suas formas e os seus caminhos, há-de saber envolver a co­mu­nidade toda, no conjunto dos seus membros, sem deixar de haver espaço para competências distintas, como é o caso do ministério específico do grupo dos apóstolos. De facto, a eles pertenceu identificar o problema ou pelo menos escutar quem o identificou, convocar a  comunidade e finalmente dar andamento à proposta de constituição do novo minis­tério, pela oração, o jejum e a imposição de mãos. Todos os membros da comunidade estiveram implicados, através da assembleia convocada pelos apóstolos.

Estamos, assim, perante um  processo que, em linguagem de hoje, chamamos caminhada sinodal, ou seja, um percurso para identificar os problemas e procurar as soluções com a participação de todos, sem excluir as competências próprias de cada um.

 

É um caminho assim que também nós hoje nos queremos esforçar por pôr em prática.

Por isso, preparámos e realizámos uma assembleia diocese­na em que quisemos identificar, por um lado, as necessida­des internas das nossas comunidades, a começar pelos ser­viços e ministérios, assim como as mudanças que é preciso efetuar e, por outro lado, as interpelações que nos vêm do mundo de hoje, que de facto, temos por obrigação evan­ge­lizar.

Por indicação das propostas nela aprovadas, temos pela fren­te um longo caminho a percorrer, que nos há-de conduzir, por graça de Deus, a melhor organização das nossas comuni­dades e  serviços e da Diocese como tal.

Temos paralelamente um outro caminho não menos longo que é o de fazermos, constantemente e o melhor possível, a leitura dos sinais dos tempos que  estão dentro da Igreja, mas estão sobretudo para além das suas fronteiras, na vida do mundo e da nossa sociedade.

E aqui, ao olharmos para as forma como as pessoas vivem a sua vida, os critérios com que tomam as suas decisões e para os próprios modelos de vida em sociedade hoje dominantes, um dos sinais que precisamos de saber interpretar como sendo grande interpelação à proposta da evangelização que nos está confiada é o progressivo afastamento da Fé de grande número de pessoas e das suas formas de viver em sociedade.

E no que a este assunto diz respeito, incomoda-nos, sem dúvida, a oposição mais ou menos declarada ao projeto cristão e à vida da Igreja enquanto tal, mas deve-nos incomodar ainda mais a crescente indiferença de muitas pessoas não só perante a Fé Cristã, mas também ao facto religioso como tal. Notamos que cresce o número daqueles que consideram inútil o interesse pela dimensão religiosa da vida, na qual incluem a proposta cristã e a vida da Igreja; isto, apesar das suas muitas marcas no património recebido e presente em muitas das atuais formas de vida e orga­ni­zação em sociedade.

Recentes dados estatísticos falam de que 30% dos europeus se declaram sem religião e, dentro destes cerca de 18%, indiferentes completos. Esta percentagem acentua-se nas camadas jovens e em certos países mais do que em outros, aprofundando-se também a  ruptura da transmissão dos valores religiosos e sua componente ética.

E nós estamos também a sentir isso mesmo nos nossos ambientes, com a indiferença pelos valores cristãos a crescer de dia para dia, em pessoas que vivem a nossa lado, mesmo quando não dispensam certos rituais, mais ou menos de inspiração cristã, como as festas.

Uma coisa é certa, a nossa condição de discípulos de Cristo não nos permite sermos indiferentes para com os indife­rentes; os quais, de facto, optaram por viver a vida como se Deus não existisse; a ponto de nem sequer se questionarem sobre a sua existência.

Estas e outras marcas de indiferença estão muito relacio­nadas com a cultura dominante no nosso mundo ocidental, onde impera  a chamada imanência, com a tentativa de ex­clu­ir tudo o que supera os conhecimentos e as capacidades das pessoas. De facto, este contexto existencial que está cada vez mais perto de nós e também acaba por nos influenciar temos de o saber ler e interpretar e ver nele o apelo ao essencial da nossa missão de discípulos de Cristo, a saber: testemunhar, sobretudo com obras a nossa dependência feliz de alguém que é maior do que nós, o Deus de Jesus. Esse nunca é indiferente, seja para quem for, quaisquer que sejam as suas convicções ou falta delas e, portanto, a sua oferta de salvação é para todos os que habitam esta casa comum.

E neste esforço por testemunhar a alegria que brota da nos­sa Fé, vamos reconhecendo que, em muitas circunstânci­as, a au­sência ou o silêncio de Deus não são menos preen­chi­dos pela presença do Espírito Santo na própria munda­ni­da­de do mundo atual.

Este é também o grande desafio que o Papa Francisco nos faz quando nos convida a ser Igreja em saída.

Que nestes tempos especiais, que nos continuam a impedir de celebrar a Fé nas habituais assembleias, sobretudo domi­ni­cais, possamos contar com o conforto que nos vem da Ressurreição do Senhor.

 

+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda