I Domingo da Quaresma - 2023

I Domingo da Quaresma

Homilia

26.2.2023

 

Estamos na Quaresma, este tempo especial de 40 adias durante o qual nos preparamos para a Páscoa.

Damos graças a Deus e motivamo-nos, neste primeiro de 6 domingos seguidos, para fazermos caminhada pessoal, mas também comunitária, ao encontro da Pessoa de Jesus, no Seu Mistério Pascal.

Esta caminhada quaresmal é feita por cada um de nós, mas sempre ajudados pelos irmãos e pela comunidade como tal. Queremos assim viver a Quaresma em caminhada sinodal, como nos é recomendado.

 

Todos os percursos, sobretudo os mais longos e difíceis, têm etapas e a Quaresma também as tem.

Assim, este primeiro domingo e o próximo constituem a primeira etapa e neles a Palavra de Deus dispõe-nos para a revisão de vida, diante de Jesus e do Evangelho, que nos vai pedir a segunda etapa constituída pelos três domingos centrais da Quaresma, o 3º, o 4º e o 5º.

Neles somos convidados a avaliar como estamos a viver a nossa identidade de discípulos de Cristo. Os três Evangelhos previstos para esses três domingos são três catequeses sobre o Baptismo, a Fé e a Vida Nova em Cristo Ressuscitado. Por isso, as comunidades cristãs que preparam adultos para o Baptismo, os catecúmenos, apresentam-nos, ao longo desses três domingos, cumprindo os escrutínios que o Ritual da Iniciação Cristã de Adultos prevê. Os quadros bíblicos da Samaritana, o Cego de Nascença e a Ressurreição de Lázaro são as três catequeses que nos convidam a fazer essa revisão.

A terceira etapa é constituída pelo Domingo de Ramos e a Semana Santa, que nos convidam a mergulhar no Mistério de Cristo, participando no drama da sua Paixão, para depois nos associarmos à glória das Sua Ressurreição.

O Tríduo Pascal é o centro, o núcleo da Celebração deste Mistério. Por isso, para ele nos queremos preparar bem e vivê-lo intensamente, porque é o momento central do nosso ano.

 

Hoje a Palavra de Deus apresenta-nos as tentações de Jesus, logo no início da Sua vida pública.

S. Mateus diz-nos que Jesus foi conduzido pelo Espírito Santo ao deserto para aí ser tentado.

Ora, o deserto lembra-nos a primeira Aliança de Deus com o Povo através de Moisés, no Monte Sinai. Mas também nos lembra os muitos sacrifícios suportados, durante 40 anos, antes da entrada na Terra Prometida. E neste longo e penosos percurso, houve momentos de graça, mas também outros de grande infidelidade e desgraça, como foi o caso da adoração do bezerro de ouro.

O deserto é também o lugar do silêncio e da austeridade, em que as pessoas deixam tudo o que é dispensável e se dispõem para acolher o Supremo Dom de Deus, passando a olhar a sua vida com olhos novos.

Foi nesse lugar, com todo o simbolismo que o envolve, que Jesus primeiro jejuou e depois foi tentado. E as tentações de Jesus também representam e resumem as nossas tentações, bem como indicam a maneira de as vencermos, nas circunstâncias atuais.

Assim, a tentação recorrente do materialismo, que coloca o pão à frente de tudo, é vencida pela verdade existencial de que “Nem só de pão vive o homem, mas de toda a Palavra que sai da boca de Deus”.

Por sua vez, a tentação do poder continua a ter a devida resposta na verdade evangélica do “Adorarás o Senhor teu Deus e só a ele prestarás culto, servirás”. Não ignoramos que esta tentação continua a seduzir as pessoas em geral. E a verdade, sem dúvida, é que o mundo e as sociedades não podem passar sem o exercício do poder, seja o poder político, o poder económico, o poder cultural, o social ou outro. O que está em causa é definir bem os seus fins e os meios utilizados. A tentação está em colocar os interesses á frente do bem comum. Os factos constatam que a resposta evangélica é o único caminho para combater a tentação do poder absoluto, sempre condenável.

Agora, por estranho que possa parecer, a religião também constitui outra forma de tentação, que de facto persiste nos tempos modernos. Também a resposta é dada nas palavras de Jesus - “Não tentarás o Senhor teu Deus”, querendo dizer-nos que o verdadeiro exercício da Religião e da Fé tem de excluir qualquer tipo de interesse à mistura e basear-se única e exclusivamente na gratuidade da relação com Deus.

Ora, a Quaresma é tempo especialmente favorável para examinarmos bem a nossa consciência sobre a forma como resistimos às tentações que nos aparecem pela frente

 

A Palavra de Deus diz-nos também hoje que a nossa vida é escolha constante entre a vida e a morte.

De facto, no jardim que Deus preparou para o homem e a mulher, há muitas árvores que produzem bons frutos, incluindo a árvore da vida. Mas há também a árvore cujos frutos representam o caminho a evitar, o da morte.

Escolher o caminho da vida é a nossa vocação. Mas a tentação para seguir o caminho contrário não terminou. E quando há cedências a esta tentação, o que vemos, como aconteceu com os nossos primeiros pais, são consequências desastrosas.

 

Anima-nos, porém, uma grande esperança, no percurso das nossas vidas. É que, se é verdade que por um homem entrou o pecado no mundo e com o pecado a morte, ainda é mais verdade que por um outro homem – Jesus Cristo – entrou a graça e o amor superabundante de Deus nosso Pai. E esse amor vence o pecado e a morte. Só espera que lhe saibamos abrir as portas do nosso coração e da nossa vida para ficarmos por inteiro justificados. Esta é a mensagem do Apóstolo Paulo.

 

Na realidade somos pecadores por condição. Esse é facto que comprovamos nos nossos comportamentos pessoais e também dos outros.

Mais sentimos que o pecado de uns repercute nos outros, com seus efeitos negativos; e pior ainda, quando esses outros são inocentes. Daí a obrigação que todos temos de reparar, quanto de nós depende, os efeitos de tantos males e pecados que infelizmente continuam a existir.

E nós queremos, nesta Quaresma, reforçar a nossa determinação para combater esses efeitos maléficos. Mas também há outra verdade que não podemos esquecer. É que nenhum mal ou pecado, por piores que sejam as suas consequências, se desfaz eliminando os seus autores. Foi isso mesmo que felizmente descobriram culturalmente as sociedades modernas, onde, com raras excepções, a pena de morte foi erradicada das suas leis.

Cumpre-nos, por isso, exercer bem o dever da correção fraterna. Cada um de nós é chamado a corrigir-se primeiro a si próprio e assim ganhar autoridade para ajudar os irmãos no processo da mesma correção.

Este é o caminho que a Quaresma nos aponta, com a certeza de que não há pessoas irrecuperáveis nem dramas insuperáveis.

 

A Misericórdia infinita de Deus, sem prejuízo do respeito devido à nossa liberdade e responsabilidade pessoais, é sempre a última palavra, o que muito nos anima.

 

Guarda, 26.2.2023

 

+Manuel da Rocha Felício, Bispo da Guarda