
O Papa Francisco fez uma viagem apostólica à Irlanda nos dias 25 e 26 de agosto para estar no 9º encontro mundial das famílias.
Todos esperavam que houvesse também uma palavra clara sobre os abusos sexuais praticados nesse país e no mundo por membros do clero. E o que se esperava aconteceu. O Papa foi directo ao assunto quer na oração que fez em santuário mariano, quer na homilia da celebração de encerramento do encontro. Para além de pedir perdão pelos crimes praticados, encontrou-se com vítimas, algumas das quais quiseram anonimato e reafirmou o princípio da “tolerância zero” no tratamento destes casos, assim como a determinação de reforçar a vigilância para prevenir o futuro.
Houve duas notícias cuja coincidência com a visita do Papa à Irlanda não podemos tomar por inocente.
Uma delas foi a publicação das conclusões de uma investigação feita no Estado de Pensilvânia (Estados Unidos), onde se apontam crimes destes cometidos ao longo de várias décadas.
A outra foi a publicação de uma carta de 11 páginas por Mons. Carlo Maria Viganò, que foi Núncio Apostólico em Washington desde 2011 até 2016. Nessa carta o ex-Núncio acusa o Papa Francisco de não ter actuado, em tempo devido, embora sabendo do caso, contra o ex-Arcebispo de Washington, agora com 88 anos e já afastado do Colégio Cardinalício. Nesta carta Mons. Viganò, considerado da ala mais conservadora da Igreja, chega ao ponto de pedir ao Papa para renunciar.
Sobre estas duas notícias publicadas durante ou imediatamente antes da visita do Papa à Irlanda, desejo, antes de mais, citar o investigador americano David Gibson, director do Centro de Investigação sobre Religião e Cultura, da Universidade de Fordham (Estados Unidos). Considera ele que este “parece um jogo óbvio dos conservadores para deslegitimar o Papa”. E na realidade a tentativa de deslegitimar o Papa está em curso, com notícias várias, que temos de considerar “fake news”, mas que chegam ao ponto de o acusarem de erros doutrinais e até blasfémias.
Voltando à matéria em causa, temos de concordar em que já o Papa emérito Bento XVI, mas sobretudo agora o Papa Francisco tiveram intervenções claras e corajosas sobre o assunto, pediram perdão em público, procuraram ir ao encontro das vítimas para remediar as situações até onde isso é possível, mandaram julgar e aplicar as devidas penas aos abusadores, enfim, tentaram reforçar a vigilância sobre pessoas e instituições para acautelar o futuro.
Apesar de tudo isto, a ala mais conservadora da Igreja deseja agora colocar o Papa Francisco fora de cena, contra a clareza e a coragem das suas últimas intervenções sobre o assunto que só não convencem quem está mal intencionado.
Isto não significa que a Hierarquia da Igreja tenha, logo desde o início, agido a tempo e com a devida clarividência, em todos os casos. Por isso, as consequências estão à vista, quer no grande número de vítimas e no sofrimento das suas famílias quer também quanto à perda de confiança não só na Hierarquia, mas também na própria Igreja enquanto tal. E os prejuízos estendem-se à própria sociedade enquanto tal que, realmente, deseja ver na Igreja a referência moral de que efectivamente precisa e lhe está a faltar.
Sobre as posições que está a tomar o Papa Francisco e que parecem incomodar a ala mais conservadora da Igreja, desejo citar o investigador americano Paul Elie, ligado a um centro de investigação de Geortown (Estados Unidos) sobre Religião, Paz e Assuntos Mundiais. Elogia a coragem com que o Papa Francisco enfrentou a recente crise do Chile, chamando todos os seus bispos a Roma, elogia a carta que ele escreveu no passado dia 20 de agosto ao Povo de Deus sobre o assunto e que, em seu entender, representa um passo em frente na procura de caminhos novos para superar esta crise que, sem dúvida, é uma das mais graves que a Igreja enfrentou ao longo dos seus 20 séculos de vida. Conclui apontando a importância de a liderança do Papa Francisco ser uma liderança forte e dizendo expressamente: “Para além do seu poder na Igreja, o poder no Papa no mundo está em liderar através de gestos simbólicos, o que é mais do que o simples poder executivo”.
Também nós confiamos em que as atitudes que o Papa Francisco está a tomar, para além de contribuírem para a purificação da Igreja no seu interior, são uma chamada da atenção da sociedade para um problema cuja solução exige o empenhamento de todos.
Portanto, para bem da Igreja e da própria sociedade, esta não pode ser hora de divisões e confrontos em relação à figura do Papa, mas sim de esforço concertado para pôr fim a um mal difícil de qualificar, mas que a todos prejudica gravemente.
Por isso, o Papa Francisco, nas posições clarividentes que está a tomar, merece o apoio e a cooperação de todos os católicos e pessoas de boa vontade.
3.9.2018
+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda