(Igreja da Misericórdia)
Acabámos de escutar: «O Verbo era a luz verdadeira, que, vindo ao mundo, ilumina todo o homem. Estava no mundo e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu. Veio para o que era seu e os seus não O receberam. Mas àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus. Estes não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus. E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós.…»
É à luz do Verbo que buscamos critério para entender o Homem e o mundo? Acreditamos, realmente, que o Natal, Deus feito Homem, é caminho de salvação e sentido para todo o ser humano, crente e não crente, de modo que sintamos a urgência de O apresentar para que ninguém fique impedido de se decidir conscientemente?
«Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos Profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por seu Filho…». É no encontro com o mistério da sua pessoa e na escuta da sua palavra que se vai clarificando para nós o que somos; e que podemos revisitar o que temos sido e vivido, e ordenar-nos para o que podemos ser.
Neste horizonte, de quem sou eu filho, realmente? Aos que O receberam, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus. A filiação humana é um laço universal. Começa por ser um facto inato: adquire-se ao nascer e por ter nascido. Quem nasceu, é filho. Podemos ser ou não pais, irmãos, tios, sobrinhos, primos, etc. Mas somos necessariamente filhos. Claro que esse facto deve depois crescer como relação, mas é um facto universal, à partida.
Mas a filiação divina é diferente. Igualmente universal, ela não é um facto inato, é um dom. E para se efectivar na vida de cada um, precisa de ser recebida: aos que O receberam deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus.
Mas o evangelista alerta que pode não se receber. Talacolhimento é um apelo e um dinamismo constante, não é um dado adquirido. Supõe uma decisão renovada da vontade, uma adesão permanente. Pede que não nos deixemos cair num certo adormecimento, próprio de já nos considerarmos como seus, e acabarmos por nos apegar a hábitos adquiridos e não O reconhecermos quando nos visita.
De facto, de quem sou eu filho? O que me desperta uma adesão renovada? O que me rejuvenesce a decisão de acolhimento e entrega generosa e confiante, em cada dia, em cada momento? O que ainda tem a força de me encantar e desencadear as forças mais profundas da minha alma?
O texto do Evangelho procura iluminar-nos: recebê-l’O não é uma intenção genérica. É um novo nascimento, que substitui velhas formas de nascer e viver. Vejamos quais:
Em primeiro lugar, não nascer dos laços do sangue. Trata-se de aceitar ser elevado a outros laços, os laços da fraternidade da fé. Já não nos conduzirmos primeiramente pela biologia ou pela natureza material. Não negamos nada do que, sendo dessa dimensão, todavia já não nos prende aí; porque integramos essa realidade (laços familiares, memórias das origens, amizades, coisas deste mundo, etc.) na nova relação que nos é dada em Cristo.
Será que essas novas relações e ocupações vão sendo estruturantes de uma constante identidade renovada? Ou vão colidindo com o que trazíamos ou fomos adquirindo? As nossas comunidades, os outros baptizados, os nossos contemporâneos, os nossos próximos são realmente os nossos irmãos e familiares? Ou apenas destinatários das nossas ocupações?
Em segundo lugar, não nascer do impulso da carne. Trata-se de já não nos guiarmos primeiramente pelo sentimento (de atração ou repulsa) e pelo que é imediato. Irmos deixando de ser sobretudo reactivos, de correr o risco de decidirmos “ao lado”.
Somos chamados a discernir, isto é, a meditar para decidir, e a fazê-lo segundo o impulso do Espírito. Mas isso supõe elevarmo-nos do horizonte natural, da primeira impressão, do que sempre se fez, da bolha mediática, do algoritmo, do que nos fomos habituando e já não questionamos.
Em terceiro lugar, não nascer da vontade de um homem. Trata-se de já não absolutizarmos o que pensamos e queremos, achamos e sonhamos, como se tal fosse o grande objectivo de vida. Não basta alimentarmos, em nós e nos outros, uma vida psíquica, que busca conquistar uma felicidade entendida como realização pessoal.
Como nos recorda a Evangelii Gaudium (do Papa Francisco), também nós podemos prender-nos nesse horizonte e cair no individualismo, na crise de identidade, no declínio do fervor e na acédia (preguiça espiritual) paralisadora.
O nascimento que traz a filiação divina é o que nos faz nascer de Deus, isto é, do Alto, da fé. Somos verdadeiramente filhos do Alto? É aí que apostamos as nossas decisões? Mesmo que as missões assumidasfossem um absoluto fracasso, o essencial continuaria a ser recebê-l’O e comunicá-l’O. A partir do Alto.
Às vezes o nosso excesso de ocupação ou correria pode fazer perder esta ligação ao Alto; começamos a viver do imediato, do urgente (nem sempre coincidente com o essencial), daquilo de que nos pedem contas, da imagem que terão de nós… ou então a partir de mim, do que posso ou não posso, do que vejo ou não vejo.
Viver do alto é viver do Espírito. Com a liberdade de estar sempre pronto a partir para e por onde o Espírito quer soprar. Sair de nós mesmos e identificar as periferias da existência, nossas e dos nossos mais próximos a quem somos enviados. Sempre com a Igreja, e sempre para lá da(s) igreja(s) e sacristia(s), e das fronteiras visíveis da Igreja. E para lá dos nossos grupos e afinidades.
Viver do Alto é reconhecer os instrumentos (os dons do Espírito) e os horizontes (os frutos do Espírito) que somos chamados a apostar. Cuidamos de nos ordenarmos em vista dos frutos que nos são apresentados no capítulo 5 da carta aos Gálatas e no catecismo da Igreja? Não como meros ideais impossíveis de alcançar, mas como metas para as quais caminhamos, aliados do Espírito Santo?
E recorremos activamente aos sete dons do Espírito Santo, para que Ele realize em nós a transformação filial? São eles que operam em nós o querer e o agir em aliança com Deus.
São eles que nos capacitam para a inteligência da fé capaz de interpretar as coisas a partir de dentro, onde Deus ilumina o coração; que nos dão a ciência espiritual, capaz de reconhecer o sentido divino nos acontecimentos, sem cair em predestinações nem superstições; que nos comunicam a sabedoria do coração, capaz de elevar do dever e do saber ao sabor das coisas que são feitas em Deus.
São ainda eles que nos concedem o discernimento e fortaleza espirituais, capazes de fazer mover-se e permanecer em união com a vontade de Deus; e que nos fazem crescer na piedade e no temor de Deus, capazes de renovar a relação filial e a confiança encantada (não amedrontada) face ao assombro de um amor sem limite e sem fim.
Reparemos que o texto evangélico que escutámos, só aparentemente usa o verbo na voz activa: tornarem-se, tem aqui o sentido de serem tornados, por Ele. Sabemos bem: é Deus quem nos torna seus filhos, por seu Filho, em seu Filho. Somos e seremos filhos de Deus, na justa medida em que somos Cristo, ao seu jeito, nos seus sentimentos e atitudes.
O que signifique ser filho em Cristo, vem apresentado no evangelho segundo São João: «19Jesus tomou, pois, a palavra e começou a dizer-lhes: ‘Em verdade, emverdade vos digo: o Filho, por si mesmo, não pode fazer nada, senão o que vir fazer ao Pai, pois aquilo que este faz também o faz igualmente o Filho» (Jo 5, 19).
E noutro versículo do mesmo capítulo: «30Por mim mesmo, Eu não posso fazer nada: conforme ouço, assim é que julgo; e o meu julgamento é justo, porque não busco a minha vontade, mas a daquele que me enviou’» (Jo 5, 30).
Ser filho no Filho é renunciar a viver a partir de si, como dono e senhor da sua vida. Trata-se de renovar sempre este viver conforme se escuta, viver conforme se vê o que Deus vê e dá a ver.
Trata-se de contemplar os outros e os acontecimentos a partir do olhar de Deus; sem desacreditar que tal é possível e bom. Como dois bons amantes que não se limitam a olhar um para o outro, mas aprendem a olhar, juntos, na mesma direcção, ser filhos no Filho é aprender a olhar como Ele, e n’Ele ver como Deus vê, esperar como Deus espera, comprometer-se como Deus Se compromete, permanecer como Deus permanece.
Celebrar o Natal cristãmente é mais do que realizar boas festas, juntar a família, trocar uns presentes, cumprir tradições.
É um processo: receber Deus que vem do Alto, deixar-se activamente tornar ao jeito de Jesus, viver em atitude de escuta para comunicar ao mundo, olhar como Deus olha para oferecer ao mundo o que o pode curar e salvar.
É uma conversão missionária: abraçar a beleza «do mensageiro que anuncia a paz, que traz a boa nova, que proclama a salvação». Por outras palavras, sair de uma religião de consumo, ou ocupada em actividades, e responder ao apelo evangelizador para ir, sobre os montes ou até aos confins da raia e mais além, para que todos vejam acontecer nas suas vidas a salvação do nosso Deus.
D. José Pereira
