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NATAL – Missa da noite 2025 – homilia

«Porque um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado. Tem o poder sobre os ombros e será chamado «Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz». O seu poder será engrandecido numa paz sem fim»

Nunca é demais repetir: porque é Natal? Porque um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado. Sim, Natal é nascimento.

Ouvia há dias num podcast de uma rádio nacional, dito por Raquel, uma assistente digital, baseada nas respostas do ChetGPT: O Natal é mais um conceito do que uma experiência. Representa união, pausa e reflexão. É o momento em que as pessoas procuram estar juntas, celebrar conquistas e partilhar cuidado e atenção umas com as outras. Se esta afirmação é baseada nas respostas do ChatGPT é porque tem forte raiz no que as pessoas pensam e dizem na internet.

Mas ela traduz uma profunda confusão entre o que é uma determinada realidade e o que dela pode decorrer. É muito comum nos nossos dias: confunde-se a bondade de um coisa com a sua utilidade; o valor de uma coisa com os benefícios que dela se extraem; a inviolabilidade de uma vida humana com a qualidade com que é vivida; a dignidade de uma pessoa com a conduta que ela assume.  

Até nas realidades cristãs: confunde-se o que seja o matrimónio com o desejo de ter mulher ou marido e filhos; os sacramentos com a consolação que deles se tira; a festa do santo com a valorização da terra; a assunção de serviços e cargos com o exercício de poder; a fé com a beneficência ou serviço social.

Quando assim é, os frutos substituem a essência da realidade; e com o passar dos anos, vão-na reconfigurando. No que se refere às coisas dos Homens, esse é o caminho normal da História. Mas no que se refere às coisas de Deus, vividas na História mas não reduzidas ao devir histórico, é preciso discernimento para não acabar por perder a novidade salvadora que Deus oferece.

Voltemos ao texto: o Natal é o acolhimento do menino que nasceu para nós, do filho que nos foi dado. É um ponto de viragem na História, é a inauguração de um tempo novo e definitivo: este menino é chamado Deus forte; este filho é chamado Pai eterno. Porque é o próprio Deus a assumir aquilo que somos e a dar-nos acesso aquilo que Ele é.

Por isso é chamado Príncipe da paz. N’Ele a Paz é fonte: Ele é a possibilidade de a relação ser encontro e não conflito de interesses, de a diferença ser complementar e não disruptiva, sempre e não apenas quando interessa. Porque Deus é isso: esta comunidade inter-relacional de três Pessoas num só. É este Deus que, no Natal, entra no mundo e vem viver entre nós para ser fonte, abrir novas possibilidades de relação, de reencontro, de paz.

Enquanto fonte perene e invencível, esta é uma paz sem fim. Mas só se tornará cada vez mais efectiva na vida do mundo e das sociedades se as nossas relações se enraizarem nesse Menino que é Deus.

Por isso o fruto não está garantido. Quantas vezes ao longo da História, nós, discípulos de Cristo nos apresentámos como herdeiros e portadores dessa novidade do Natal mas não enraizámos na essência do Natal as nossa decisões e acções. Preferimos alguns dos frutos do Natal, mais fáceis e imediatos, à novidade do Natal. E acabámos a guerrear em nome da fé; e alimentamos conflitos e divisões, com base em visões autorreferenciais acerca de Jesus e da sua presença entre nós.

Nas sociedades, algo de semelhante acontece: deixamo-nos enredar em teias de suspeições, insinuações, acusações, interesses e perseguições constantes. Há uma tendência para a conflitualidade que se foi estendendo e já vai estando instalada nos nossos ambientes: nas relações familiares, entre vizinhos, nas relações laborais, nos interesses económicos e comerciais, nas instâncias diplomáticas, na actividade política.

Não tem de ser assim. A civilização dita ocidental foi matriz do reconhecimento e defesa dos direitos humanos, da instauração de regimes democráticos e livres, da valorização simultânea do indivíduo e da solidariedade social, da sã convivência entre diferentes povos. No processo que a gerou, um dos pilares inspiradores foi a consciencialização do valor inquestionável de cada pessoa.

A este processo não foi alheio o modo como o Natal foi vivido: se este é o nascimento de Deus segundo a carne, no qual Deus “uniu-se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos de homem, pensou com uma mente de homem, agiu com uma vontade de homem e amou com um coração de homem. […] tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, excepto no pecado, Ele, o Redentor do homem” (Redemptor hominis 8), então nenhumapessoa é descartável. Pelo contrário, é como que sagrada, e chamada à Redenção.

Infelizmente, esta certeza profunda associada em parte ao Natal tem perdido força nestes nossos tempos. Haverá muitas razões associadas. Julgo que uma, com relevância significativa, é a regressão da compreensão e vivência do Natal cristão. E não me refiro ao Natal do consumo e da promoção comercial do Pai Natal. Isso é uma consequência, não a essência dessa mudança.

Falo antes da substituição da fé teologal, aquela que nos põe em relação viva com Deus sobrenatural, pela razão teísta, aquela que se autoconsidera como resposta de sentido e de busca espiritual a todas as inquietações e procuras da alma humana.

Por vezes ouve-se dizer que o Homem de hoje é ateu. São inúmeros os autores e as experiências actuais que desdizem essa afirmação. Adultos e jovens manifestam sede de espiritualidade e procuram práticas, ritualidades, relações identitárias, respostas claras e seguras que a saciem. A maioria fora das religiões institucionais; alguns na nossa Igreja.

A razão humana é uma forma de captar e tentar dizer a realidade. Permite aproximações, mas tem consciência do seu limite, porque a realidade total é imensamente maior do que aquilo que em cada circunstância, pessoal e epocal, a razão humana conhece. Aplicada esta certeza à realidade natural, a razão lança-se numa renovada procura, qual investigadora da verdade que simultaneamente descobre e persegue.

Mas o advento da razão científica e tecnológica, do idealismo absoluto que reduz a realidade ao que dela se pode pensar e conhecer, da dialética dos opostoscomo motor da história, do psicologismo como explicação completa para o mundo interior, agora compreendido apenas como um conjunto de processos mentais, alterou o modo de nos olharmos no mundo, e como humanidade, na relação com o divino.

Todo este movimento que emergiu no séc. XIX, sobretudo no mundo alemão, foi fazendo paulatinamente o que o iluminismo francês não conseguiu de imediato quanto tentou impor o Culto da Razão, depois substituído pelo Culto do Ser Supremo, também sem sucesso. Mas se não teve sucesso, preparou a base onde foi possível edificar a mudança acima referida.

De facto, substituindo Deus pela razão e fundando nesta toda a visão acerca do Homem e do mundo, assentando nela a organização social e os pilares da liberdade, igualdade e fraternidade, perdeu-se a fonte absoluta, perene e invencível, da paz sem fim. A ausência efectiva de paz já não é apenas fruto da contradição que provém de não nos enraizarmos no Menino em que acreditamos.

Sem Deus sobrenatural e absoluto, sem Deus entre nós, sem o Natal, apenas com a razão que julga ocupar o lugar de Deus, deixa de haver onde nos enraizarmos. Ficamos entregues às nossas potencialidades e às nossa contradições. E é a própria razão que fica à mercê das conjunturas e perde a forçaque julgava ter.

A fraternidade, a igualdade e a liberdade, o sentido da existência e o cuidado solidário para com os outros e o mundo já não assentam na comum filiação de todos recebida do Filho que nos foi dado como irmão de um mesmo e único Pai, realidade absoluta e perene. Assentam antes naquilo que a razão estabelece como factor válido para tal, realidade mutável e exposta aos antes referidos conflito de interesses, diferença disruptiva, suspeições, insinuações, divisões e afins, e sujeita a maiorias conjunturais e relativas.

A paz fica reduzida à dissuasão de atacar por medo da força do adversário. Mas se a percepção é a de que o outro é mais fraco, fica o campo livre para a expansão dos interesses do mais forte.  

Urge pois regressarmos à filiação que o Natal inaugura e oferece. Sem lamentarmos o tempo presente, deixemo-nos renovar pelo anúncio dos anjos: «Não temais, porque vos anuncio uma grande alegria para todo o povo: nasceu-vos hoje, na cidade de David, um Salvador, que é Cristo Senhor. Isto vos servirá de sinal: encontrareis um Menino recém-nascido, envolto em panos e deitado numa manjedoura».

Sigamos o mesmo movimento que temos vindo a meditar: o foco é o Menino recém-nascido, Cristo Senhor, Salvador. Que se apresenta não apenas na fragilidade de um bebé, mas também na pobreza. Ele,que sendo rico Se fez pobre por nós para nos enriquecer com a sua pobreza. (cf. II Cor 8, 9)

Sim, despojado de todos os sinais evidentes da glória, aparece na cidade de David, a mais pequena das cidades de Judá mas de onde sairá um rei-pastor que apascentará o seu povo; e envolto em panos, anúncio daqueles que O envolverão mais tarde para a sepultura e que deixará no chão, ao ressuscitar.

Reparemos bem: a pobreza não é aqui a carência. É abertura para a riqueza: a pequena povoação é o lugar para o crescimento do cuidado solícito do Bom Pastor; a veste simples e parca é o sinal que anuncia o início da nova criação.

A alegria anunciada pelos anjos emerge como o fruto do Natal. Retomemos, cristãos, o Natal de Jesus. Ofereçamos ao mundo o Natal de Jesus. E Jesus será para cada um e para o mundo uma paz sem fim, uma grande alegria.

D. José Pereira