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Reflexão Episcopal: IV Domingo da Quaresma (B)

1.Celebramos hoje o IV Domingo da Quaresma que também se chama Domingo da alegria, por estar próximo da solenidade da Páscoa.

Ora, nós sabemos que a verdadeira alegria tem uma única fonte, a bondade infinita de Deus que, em si mesmo,  é amor.

Como nos lembra hoje a Carta aos Efésios, Deus é rico de misericórdia para com todos pelo grande amor com que nos amou, amor este que tem um nome – Jesus Cristo. Estivemos de facto mortos pelo pecado e voltámos à vida, ressuscitados com Cristo. É esta a mensagem da Páscoa que já estamos a ver no horizonte próximo.

Deus amou de tal modo o mundo que lhe entregou o Seu Filho único – palavras estas dirigidas a Nicodemos e registadas no Evangelho de S. João que acabámos de escutar. Nicodemos, esse homem que procurava a verdade e a salvação e por isso foi ter com Jesus de noite.

E o caminho desta entrega foi a cruz, que, como aconteceu com aquela serpente levantada diante do Povo por Moisés, também hoje nos cura de todos os males, como fonte de alvação que é para toda a humanidade.

2.Na mensagem que nos enviou para esta Quaresma, o Papa Francisco convida-nos a ver o que se passa à nossa volta, a ver bem o que se passa nas nossas vidas pessoais, na vida da Igreja e na vida do mundo. E para ver bem precisamos de luz.

Ora, a salvação que Jesus nos traz é também a luz que nos ajuda a ver, a identificar bem as nossas boas obras e a saber distingui-las das que lhes são contrárias. Quantas vezes connosco acontece o que diz o evangelho – os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras são más e não querem que elas sejam denunciadas.

Contrariamente a esta tentação, a verdade liberta-nos, desinstala-nos e interpela-nos sempre para irmos mais longe. Quem quer continuar instalado e recusa a mudança refugia-se muitas vezes nas meias verdades que são também meias mentiras e remete a verdade que interpela para o domínio das consciências individuais, procurando tirar-lhe assim a garantia e a força da sua objetividade, como se distinguir entre a verdade e a mentira, entre o bem e o mal possa ser pura e simplesmente um assunto de opinião pessoal. É por isso que alguns analistas falam do nosso tempo como sendo época da “pós-verdade”.

Se, porém, abrirmos bem os olhos, como o Papa recomenda na mensagem para a Quaresma, temos de reconhecer que a realidade se impõe por si mesma, não depende de nós; e quando tal não é reconhecido, porque cada um quer fazer de si mesmo a única medida do mundo e das escolhas que é preciso realizar, multiplicam-se situações indesejáveis que fazem sofrer.

3.É, por isso,  grande a nossa responsabilidade quanto a deixarmo-nos alumiar pela luz da Palavra de Deus, que nos leva a conhecer a verdade e consequentemente a separar o bem do mal. Sabemos que o mundo de hoje tem grande dificuldade em distinguir claramente entre o bem e o mal. E quando se confunde o bem com o mal os resultados são sempre trágicos, fazendo sofrer sobretudo os mais pobres e indefesos.

A Quaresma é tempo especialmente próprio para nos exercitarmos nesta leitura da realidade que somos nós e o mundo, à luz que nos vem de Deus e da sua Palavra. As recomendações quaresmais convidam-nos, por isso,  a dar mais tempo e mais atenção à escuta da Palavra de Deus. Somos, de facto, convidados a escutar, a meditar, a rezar e a aplicar à nossa vida e à vida do mundo as indicações desta Palavra. A chamada “lectio divina” é o caminho já muito experimentado, ao longo da história, que em muito pode contribuir para darmos à Palavra de Deus o devido lugar na nossa vida.

Como sabemos a primeira parte da Missa em que estamos a  participar é esse encontro com a Palavra de Deus. E por isso se chama Liturgia da Palavra, que precede a Liturgia Eucarística. E mesmo quando não é possível celebrar a Eucaristia, mas apenas se celebra a Liturgia da Palavra, é o mesmo Jesus que aí está presente. Por isso é que nas nossas Igrejas as regras litúrgicas mandam que a dignidade do ambão de onde se proclama a Palavra seja equiparada à dignidade do altar, onde se celebra a Eucaristia. Será bom, por isso, que, nas nossas comunidades, para além do tempo destinado à assembleia Dominical, vão surgindo outros espaços e tempos dedicados à escuta e meditação da Palavra de Deus, de onde eventualmente possam surgir sugestões para a elaborar a própria homilia dominical.

Assim se cuida essa luz que nos vem de Deus, da qual tanto precisamos para entender a nossa vida e a vida do mundo

E a Páscoa que nos preparamos para celebrar é também a luz e a força do Ressuscitado para os caminhos do mundo novo que todos precisamos e queremos de ajudar a construir.

4.Deus quer esse mundo novo, mas não o quer construir sem a nossa cooperação. Por isso nos acompanha, como acompanhou o Seu Povo, nos momentos mais positivos como nos menos positivos ou mesmo de comprovado fracasso.

Disso nos fala hoje o II Livro das Crónicas.

Deus nunca nos deixa sozinhos. Esteve ao lado do Povo, quando ele cometia infidelidades graves. Respeitou-o, quando recusava os mensageiros que lhe eram enviados ou perseguia os profetas. As consequências foram as que foram e neste caso levaram à destruição da cidade de Jerusalém e do Templo, seguindo-se o Exílio da Babilónia, com os tempos difíceis da escravidão, ao serviço de uma potência estrangeira.

Mesmo assim, Deus não abandonou o Povo. Continuou a acompanhá-lo criando as condições necessárias para o fim desta escravidão e o regresso à Pátria.

E porque Deus é o Senhor da História, orientou os acontecimentos e trabalhou aquele rei da Pérsia, o rei  Ciro, inspirando-o para autorizar, por decreto o regresso do Povo de novo à sua Pátria. E por essa inspiração, o mesmo Ciro reconhece-se mandatado pelo  Deus do Céu, que lhe entregou todos os reinos da terra, para reconstruir o seu Templo em Jerusalém.

Deus é, de facto, o Senhor da História e conduz todos os seus acontecimentos. Mas não quer dispensar-nos.

Compreende inclusivamente as opções erradas que nós possamos tomar, como compreendeu os erros do Seu Povo que o levaram ao Exílio. Acompanha-nos nos sofrimentos que possam resultar das nossas escolhas erradas e, como fez ao Rei Ciro, continua a inspirar-nos sobre tudo o que devemos decidir em cada tempo e em cada lugar. Convida-nos, assim, a participar na definição dos rumos que a história deve tomar para bem de todos.

Essa é responsabilidade de cada um de nós que não podemos entregar a mais ninguém. Pertence-nos portanto participar na definição do rumo da nossa história coletiva.

5.No dia de hoje essa responsabilidade concretiza-se no ato eleitoral.

Claro que esta responsabilidade não termina ao fim do dia de hoje, pelas 8/9 horas da noite, para só lá voltarmos de novo nas próximas eleições. Ela tem de ser contínua.

Quem nos governa precisa de nos ouvir, de forma continuada,  e deve haver condições para isso.

E cada um de nós tem obrigação de usar os meios necessários para fazer ouvir também a sua voz.

E fazer-nos ouvir para quê?

Para  lembrarmos constantemente que precisamos de uma organização social onde todas as pessoas tenham lugar, todas se sintam bem acolhidas e cuidadas, onde possam desenvolver as suas capacidades e colocá-las ao serviço do bem comum. A dignidade de todas e cada uma das pessoas tem de estar sempre à cabeça das opções que forem tomadas. Nunca a moda ou as ideologias podem tomar a dianteira em relação ao bem fundamental das pessoas todas e de cada uma delas, na situação concreta em que se encontra.

Depois, também precisamos de progredir nas formas de utilizar bem o recursos que a natureza põe à nossa disposição. Estes recursos foram, de facto, criados por Deus para todos, aqueles que hoje pisamos a superfície do planeta e aqueles que nos hão-de suceder, as gerações futuras. À nossa responsabilidade está confiada a sua devida gestão para que a ninguém falte o necessário e não haja esbanjamentos.

É por isso que entre quem governa e os que são governados não se pode interromper nunca a relação e o diálogo sobre os assuntos que interessam a todos. E precisamos de ser criativos quanto a encontrar as melhores formas de manter essa relação, essa auscultação mútua para discernirmos conjuntamente os caminhos mais ajustados a cada situação concreta.

6.Rezamos, nesta hora, por quem nos vai governar para que o serviço da governação se traduza sempre na procura do melhor bem para todos, com privilegiada atenção aos mais vulneráveis.

10.3.2024

+Manuel da Rocha Felício, Bispo da Guarda