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Reflexão Episcopal: V domingo da Quaresma (B)

Estamos a aproximar-nos, a passos largos, da Páscoa.

De facto, neste domingo, a Palavra de Deus convida-nos a centrar a nossa atenção de forma especial na Paixão e Morte do Senhor Jesus Cristo.

E para sublinhar como toda a atenção deve estar voltada para o Mistério da Morte e Ressurreição de Jesus, evitando todas as distrações, mesmo com coisas santas, a Liturgia permite, embora sem obrigação,  que se cubram todas as imagens, incluindo as cruzes, nos lugares de culto, sendo descobertas as cruzes após a celebração solene da adoração da Cruz em Sexta-feira Santa e as outras imagens antes da Vigília Pascal.

Este V Domingo da Quaresma é também chamado I Domingo da Paixão, sendo o segundo Domingo da Paixão, o Domingo de Ramos em que lemos e meditamos a Paixão do Senhor.

A Paixão e a Morte de Cristo são, por si mesmas, fonte de vida.

E hoje vamos deixar-nos conduzir pelos Apóstolos Filipe e André ao encontro de Jesus, partilhando o desejo ardente de o ver que lhes manifestaram aqueles gregos, que vieram a Jerusalém para participar na Festa; e certamente já tinham ouvido falar dele.

De facto Filipe e André levaram a Jesus esse desejo.

E vejamos agora  como é que ele lhes respondeu.

Jesus começou por lhes dizer que ia ser glorificado, mas que essa glorificação coincidia com a Sua morte; coisa muito estranha.

Por isso,  também nos  interrogamos porque é que a morte de Jesus é glorificação, ou seja, na vez de ser destruição, é vitória?

A morte de Jesus é acontecimento positivo de vitória, porque nos diz o que é viver e como se pode viver a vida com sentido e na verdade autêntica.

 E Jesus diz-nos isso mesmo através de comparações muito elucidativas. Se não vejamos.

A primeira comparação é a do grão de trigo lançado à terra.

Se não morresse ficaria sozinho, mas ao morrer dá fruto abundante.

A explicação continua, de forma muito direta e explícita, dizendo-lhes – quem ama a sua vida perdê-la-á e quem despreza a sua vida neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna.

Portanto viver como Jesus, e é isso que tem de desejar todo o verdadeiro discípulo, consiste em dar a avida, em entregá-la generosamente para serviço dos irmãos e glória de Deus. Não temos, portanto, que ter medo de perder a vida, segundo os critérios do mundo em que vivemos, para ganhá-la, como Jesus a ganhou para si e para nós.

Este é o caminho que agrada a Deus e pelo qual cada um de nós cumpre bem a sua vocação e missão, com a certeza de que terá a devida recompensa, porque como diz Jesus, “Meu Pai o honrará”.

Claro que viver assim é exigente e há naturalmente momentos de perturbação diante das dificuldades e do sofrimento, perturbação que também o próprio Jesus teve perante a aproximação da sua Paixão e da sua Morte,  que só em Deus podemos superar, como igualmente aconteceu com o mesmo Jesus.

De facto, foi para Jesus, mas também para nós que se fez ouvir aquela voz vinda do Céu, a dizer, “Já o glorifiquei e voltarei a glorificá-lo”. Isto significa que o que se passou na Pessoa de Jesus – a glorificação na hora da Paixão e da Morte – acontece também com todos aqueles que vivem a sua vida à maneira de Jesus, fazendo dela uma entrega aos outros para os servir e a Deus para o louvar.

Temos à nossa frente duas semanas de preparação imediata para a Páscoa, que hão-de servir par a nos interrogarmos, diante da Paixão e Morte de Jesus, sobre o que queremos fazer da nossa vida.

Este tempo tem de servir  para avaliarmos se os caminhos que estamos a percorrer são realmente os caminhos daquela glorificação anunciada pelo Pai do Céu para a Pessoa de jesus, na hora da Sua Paixão e da sua Morte.

 Temos, por isso,  de nos perguntar se, como Ele, também nós fazemos tudo para expulsar o maligno de nós próprios e dos nossos ambientes  e abrir tão só as portas do bem para todos; ou se há sinais de que se está a passar o contrário connosco.

O convite é, de facto, para fazermos destes tempos de preparação próxima para a Páscoa tempos de revisão de vida diante da Palavra de Deus e dos nossos compromissos batismais, para podermos, com verdade, renovar as promessas do Batismo na Vigília Pascal.

Hoje, em muitos lugares e também na cidade da Guarda, celebra-se a tradicional Procissão dos Passos. Vai partir desta Igreja da Misericórdia e nela termina. É, de facto,  uma notável tradição promovida pela Irmandade da Santa Casa da Misericórdia, com a qual nos congratulamos.

 Este é mais um convite e uma oportunidade para colocarmos a Paixão e Morte de Jesus no centro da nossa meditação, ao longo destas duas semanas.

Há também outras formas que a tradição nos vai legando para nos ligarmos à mesma Paixão e Morte de Jesus, ao longo da Quaresma, como é a celebração da Via-Sacra ou simplesmente fazermos a leitura meditada de algum dos 4 relatos da Paixão e Morte de Cristo, que o Novo Testamento nos apresenta ou até escutarmos os cânticos tradicionais dos martírios do Senhor.

Queremos com todos estes contributos e outros, renovar e aprofundar a nova Aliança que, por sua iniciativa, Deus estabelece connosco, como foi anunciada pelo Profeta Jeremias e inaugurada na Pessoa de Jesus Cristo. E nós hoje Precisamos que essa Aliança se traduza, cada vez mais,  no encontro vivo com a Pessoa do mesmo Jesus.

E de facto, à luz deste Encontro e desta Aliança, a vida ganha novo valor e novo sentido, incluindo nos seus momentos de dor, de doença e da própria morte que, de facto, faz parte da nossa vida.

Por isso, como Jesus, que dirigiu preces e súplicas, com grandes clamores e lágrimas, Àquele que o podia livrar da morte e foi atendido – estas são palavras da Carta aos Hebreus – também nós nos confiamos ao amor e à misericórdia de Deus, para sabermos viver, de maneira positiva, os nossos momentos de doença e de dor, assim como a preparação para o acontecimento da nossa morte.

E perguntamo-nos sobre como estamos a ajudar os outros a vivê-los igualmente.

Acabámos de ler a Carta aos Hebreus, que nos vai acompanhar diariamente nestas duas semanas até à Páscoa. Também a realidade do sofrimento humano aí é contemplada para nos fazer compreender como, por amor, Jesus, Filho único de Deus, aceitou partilhar o drama da existência humana e, na total obediência, renunciar a toda a vontade de poder para aceitar a verdade das nossas limitações. Este é caminho para vivermos e ajudarmos a viver o drama do sofrimento humano, que é incontornável nas nossas vidas.

E temos obrigação de viver assim, de olhos colocados na Pessoa de Jesus, o nosso sofrimento e ajudarmos também os outros que sofrem.

Temos, de facto, obrigação de cuidar bem uns dos outros, principalmente nas situações de maior fragilidade, como Deus cuida de nós e a Pessoa de Jesus veio para estar connosco sempre, em todas as situações.

Ora, este cuidado dos que mais sofrem assenta, em primeiro lugar na relação com eles e em criar condições para não deixarem de se relacionar com quem mais dá sentido às suas vidas.

Isto por razões que vêm da própria natureza da pessoa humana, que está vocacionada, em si mesma, para a comunhão e tem inscrita, no seu íntimo, a necessidade das relações.

E é só por isso que as experiências do abandono e da solidão metem medo, são dolorosas e até desumanas; e agravam-se ainda mais quando a fragilidade aparece misturada com a incerteza e a insegurança causadas pelo aparecimento de uma doença mais ou menos grave.

A este propósito, não podemos deixar de reconhecer o facto infelizmente muito comum, nas sociedades atuais, de a velhice e a doença serem vividas, muitas vezes, na solidão e, com frequência, no abandono.

E porquê isto?

A resposta está na cultura do individualismo e mesmo do economicismo, que exalta a produção e cultiva a eficácia a todo o custo. Por isso, esta mesma cultura torna-se indiferente e até implacável, quando as pessoas já não têm força para produzir.

O estigma da indiferença é das piores ofensas.

Chega-se, assim, à chamada cultura do descarte, segundo a qual a pessoa deixa de ser considerada um valor em si mesma e passa a ser avaliada apenas como fator de produção e consumo. E isto acontece predominantemente em etapas da vida nas quais as pessoas ou ainda não produzem – é o caso dos não nascidos, ou então quando já não produzem, como é o caso dos idosos. Daí, a tentação do deitar fora, porque não servem – o chamado descarte.

Quanto aos cuidados de saúde, importa que eles coloquem sempre a pessoa no centro e dentro da lógica chamada de aliança terapêutica, a qual envolve o cuidador ou profissional de saúde, o paciente, a sua família e rede de relações.

Por isso, é necessário que a pessoa seja cuidada em todas as dimensões que a definem, como são as familiares, as sociais, a relação consigo mesma e com Deus, dando o devido lugar à dimensão espiritual da vida humana.

Não podemos esquecer que estamos neste mundo com a necessidade imperiosa de viver na comunhão e na fraternidade e que a nossa vocação é o amor, que se vive sempre em relações de proximidade e de acompanhamento, sobretudo quando a fragilidade se manifesta mais ao vivo, como é o caso da chegada de uma doença mais ou menos grave.

Por isso, a primeira obrigação que se nos impõe como cuidadores uns dos outros é o estar presente, manifestar proximidade e acompanhamento, procurando desfazer toda a experiência indesejável de solidão e abandono.

Certamente que são importantes os diagnósticos, as decisões terapêuticas, as intervenções  e a medicação próprios da ciência médica. Mas a relação de proximidade e a atenção o mais possível personalizada a cada um, considerando sempre a rede das suas relações, nunca podem faltar, sob pena de os cuidados não levarem a cada pessoa o bem de que ela mais necessita e cuja ausência a faz sofrer tanto ou mais do que a dor física que está a sentir.

A Paixão e Morte de Cristo é chave de leitura para entendermos e vivermos todas as nossas fragilidades, incluindo os momentos de dor, de doença e da própria morte.

Que Nossa Senhora, Mãe de Jesus, tal como viveu e guardou em seu coração os acontecimentos da Paixão e Morte de Seu Filho, nos ajude a contemplá-los e vivê-los também, deixando que a sua luz ilumine todas fragilidades da nossa vida.

17.3.2024

+Manuel da Rocha Felício, Bispo da Guarda