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Vigília Pascal: homilia episcopal

19 de ABRIL de 2025

«Voltando do sepulcro, foram contar tudo isto aos Onze, bem como a todos os outros. […] Mas tais palavras pareciam-lhes um desvario, e não acreditaram nelas. Entretanto, Pedro pôs-se a caminho e correu ao sepulcro. Debruçando-se, viu apenas as ligaduras e voltou para casa admirado com o que tinha sucedido.»

Desconsideração e incredulidade diante do testemunho das mulheres que viram o túmulo vazio e a quem apareceram os anjos dizendo que Jesus ressuscitara, ao terceiro dia, como havia dito. Admiração diante da visão do túmulo vazio, apenas com as ligaduras no chão.

Esta reação dos Onze, e de Pedro, atesta bem que a ressurreição de Jesus não é um simples acontecimento prodigioso, da mesma natureza de muitos outros milagres, sinais e prodígios que eles haviam testemunhado durante a convivência com Jesus no seu ministério público. Se o fosse, seria fácil aceitá-la. Até porque haviam testemunhado a ressuscitação de Lázaro, não muito tempo antes.

Mas a ressurreição é de outra ordem. Jesus não regressa à sua vida anterior à Paixão, à vida terrena. Não faz um “reset” para retomar a vida onde estava três dias atrás. Muitas vezes, diante dos dramas e tragédias da vida, desejamos que tudo passe depressa e pedimos a Deus que nos livre das dificuldades, como que apagando os acontecimentos e as memórias negativas, para tudo voltar a ser como dantes. Não é assim que Deus age; não é assim que Jesus nos salva.

A ressurreição de Jesus não é um voltar atrás, uma intervenção para logo tudo voltar a ser como era. É um avanço adiante, é uma nova criação: «as coisas antigas passaram; tudo foi renovado» escreverá São Paulo (cf. II Cor, 5, 17). É um acontecimento sobrenatural que ocorre no mundo e na história e os transforma radicalmente.

Quanto a nós, «que fomos batizados em Jesus Cristo[…] fomos sepultados com Ele pelo Batismo na sua morte, para que assim como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova. […] Bem sabemos que o nosso homem velho foi crucificado com Cristo, para que fosse destruído o corpo do pecado e não mais fôssemos escravos dele. […] Se morremos com Cristo, acreditamos que também com Ele viveremos».

Quanto ao mundo, a ressurreição de Cristo torna possível que o universo criado, contingente e finito, possa vir a tomar parte da transformação operada por Jesus, e deste modo um dia «ser libertada da escravidão da corrupção, e assim participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus» (cf. Rom 8, 21).

Este é um desafio constante à nossa vida de fé: as interpelações de Deus a cada um, as manifestações da redenção de Cristo no mundo, as inspirações do Espírito na vida da Igreja convocam-nos verdadeiramente a uma renovação espiritual ou rapidamente as encerramos nas nossas leituras e sensibilidades, para nos sentirmos confirmados nas nossas expectativas e estratégias eclesiais e pastorais?

Reparemos: os olhos não chegam para mergulhar no mistério da ressurreição; a lógica racional também não; também não chegam os estados de alma e a inteligência emocional. Todas essa dimensões são fundamentais enquanto permitem a operação dos sentidos, da inteligência, da memória, da emoção, necessárias para captarmos a realidade. Mas falta-lhesa vida interior, sede da relação teologal, isto é, da relação que permite reconhecer a presença e a obra de Deus. Foi a essa realidade interior daquelas mulheres, que os dois homens vestidos de branco e sentados no túmulo falaram

O pensamento cristão antigo tinha isto bem presente, como vemos em São Paulo quando fala do nosso ser como unidade corpo, alma e espírito. Posteriormente, o pensamento cristão foi integrando essa dimensão espiritual na noção de alma, simultaneamente sede das emoções, da vontade e da consciência (alma) e instância de relação com Deus (espírito). Com o advento do pensamento secularizado, a alma foi sendo substituída pela noção de mente, e o espírito foi despido da dimensão teologal, tornando-se apenas instância de elevação emocional, artística, criativa.

Urge voltarmos a cultivar a dimensão interior espiritual, capaz de acolher a acção do Espírito Santo e da Graça de Cristo. Só assim poderemos ser elevados a Deus, ser transformados para que a imagem de Deus em nós ganhe cada vez mais a semelhança em Cristo, e abrir-nos à sua presença e acção no mundo. Sem vida interior, seremos incapazes de acreditar na ressurreição de Jesus. Seremos incapazes de a reconhecer como o acontecimento decisivamente transformador da história e do mundo.

Deixaremos de a reconhecer como acontecimento salvador que nos oferece a eternidade pessoal, em comunhão fraterna e universal, a partir da vida em Deus. Reduzi-la-emos a uma facto prodigioso que aconteceu a Jesus ou substitui-la-emos por uma espiritualidade imanente que aceita a reincarnação, ou a fusão numa energia cósmica, ou simplesmente a diluição no nada.

Pelo contrário, se cuidarmos da vida interior e nos deixarmos mergulhar na novidade da ressurreição de Jesus, a nossa vida leva uma volta. Não se trata apenas de uma iluminação da inteligência para compreender e aceitar o que aconteceu a Jesus. É uma transformação da nossa vida a vários níveis.

Enuncio aqui apenas três:

A ressurreição de Jesus traz uma transformação radical quanto ao sentido pessoal da nossa existência. Aquele que se encontra com Cristo ressuscitado, pode dizer como São Paulo: «considero todas as coisas como prejuízo, comparando-as com o bem supremo, que é conhecer Jesus Cristo, meu Senhor. Por Ele renunciei a todas as coisas e considerei tudo como lixo, para ganhar a Cristo e n’Ele me encontrar […]. Assim poderei conhecer Cristo, o poder da sua ressurreição e a participação nos seus sofrimentos, configurando-me à sua morte, para ver se posso chegar à ressurreição dos mortos. […] Só penso numa coisa: esquecendo o que fica para trás, lançar-me para a frente, continuar a correr para a meta, em vista do prémio a que Deus, lá do alto, me chama em Cristo Jesus» (cf. Fil 3, 8-14).

A ressurreição de Jesus traz também uma transformação radical quanto à possibilidade da nossa relação com aqueles que já morreram. Aquele que se encontra com Cristo ressuscitado, pode dizer como São Paulo: «Se pregamos que Cristo ressuscitou dos mortos, porque dizem alguns no meio de vós que não há ressurreição dos mortos? Se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. […] e assim, os que morreram em Cristo pereceram também. […] Mas não. Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram» (cf. I Cor 15, 12-20). Deste modo, sabemos que os que foram antes de nós estão vivos; ao morrerem em Cristo, foram n’Ele sustentados e a morte tornou-se uma viagem, uma passagem deste mundo para o Pai.

A ressurreição de Jesus traz ainda uma transformação radical quanto à nossa relação com o mundo. Aquele que se encontra com Cristo ressuscitado, pode dizer com o próprio Jesus: «Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele. […] A luz veio ao mundo e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque eram más as suas obras. […] Mas quem pratica a verdade aproxima-se da luz, para que as suas obras sejam manifestas, pois são feitas em Deus» (cf. Jo 3 16-21). Deste modo, o mundo é o lugar amável, com o qual nos comprometemos para que a luz da ressurreição de Jesus o salve.

Renovados, assim, pela ressurreição de Jesus, não fiquemos na mesma. Não nos deixemos andar à toa. A nossa vida está escondida com Cristo em Deus. É na manifestação de Cristo que a vamos descobrindo e construindo. Afeiçoemo-nos às coisas de Cristo. Prefiramo-las às coisas passageiras e ilusórias. Despojemo-nos do homem velho com as suas acções e revistamo-nos do homem novo, que […] se vai renovando à imagem do Senhor. (cf. Col 3, 9b-10).

+ José Pereira